quarta-feira, 5 de março de 2025

Sobre vinte cursos on-line do Instagram reprovados sobre perícia judicial em Odontologia.

 

Sobre vinte cursos on-line do Instagram reprovados sobre perícia judicial em Odontologia.

 

André Eduardo Amaral Ribeiro, dentista perito no TJ-SP, com 275 nomeações até hoje.

Sempre se fala em renda extra nas redes sociais. E estão certos. A perícia tem sido oferecida como uma renda extra como propaganda de muitos cursos on-line mal intencionados, com instrutores ou professores que nunca foram nomeados para ser peritos, ou seja, são grandes fraudes. Essa indústria dos infoprodutos é perigosa, com altas taxas de insatisfação porque seus produtos escritos são superficiais, as apostilas e modelos de laudos.

Sempre espiono estes sites de cursinhos de perícia judicial e ajudo muitos dentistas a fugirem deles para não jogar dinheiro fora.

Encontrei estes textos depois de uma aluna me perguntar se eu conhecia o curso que pretendia fazer. Não conhecia a autora, mas espionei o site e descobri que a instrutora era uma bibliotecária. Exatamente, uma bibliotecária ensinando a um dentista a escrever um laudo.

Obviamente, a bibliotecária nunca poderia ter sido nomeada para uma perícia na Justiça Cível, por falta de diploma em Odontologia. Visitei o site dela, mal redigido e cheio de generalidades. O texto não me disse nada. Trouxe um trecho para que o aluno entendo a diferença entre conteúdo de qualidade e um conteúdo genérico, as palavras em itálico são minhas:

Desafios e Dificuldades da Profissão: A profissão de dentista perito judicial é uma atividade que requer muita responsabilidade e habilidade técnica, contudo, assim como em qualquer outra profissão, existem desafios e dificuldades que precisam ser enfrentados. Desafios: Um dos principais desafios da profissão de dentista perito judicial é lidar com a complexidade dos casos, tendo em vista que muitos casos envolvem questões técnicas e científicas que exigem um conhecimento aprofundado da área. Além disso, é preciso ter uma visão crítica e imparcial para avaliar as evidências e tomar decisões justas e equilibradas. Outro desafio é a pressão do tempo, já que os prazos para a realização dos laudos e pareceres são muitas vezes curtos, o que exige uma boa organização e planejamento para entregar um trabalho de qualidade dentro do prazo estabelecido. Dificuldades: Quanto às dificuldades enfrentadas pelos dentistas peritos judiciais, a principal é a falta de reconhecimento da profissão. Muitas vezes, os profissionais são vistos como meros prestadores de serviço, sem a devida valorização e respeito pela sua expertise. Além disso, a falta de padronização dos procedimentos e metodologias utilizadas pelos dentistas peritos judiciais pode gerar divergências e conflitos entre os profissionais. Portanto, é fundamental que haja uma uniformização dos critérios e procedimentos para garantir a qualidade e a confiabilidade dos laudos e pareceres. Outra dificuldade é a necessidade de atualização constante, sobretudo porque a área da odontologia está em contínua evolução, com novas técnicas e tecnologias surgindo a todo momento. Sendo assim, os dentistas peritos judiciais devem se manter sempre atualizados e capacitados para lidar com as demandas da profissão.

Os termos indefinidos já indicaram que a autora nada sabia sobre o que escreveu. Note o “muita responsabilidade” como é uma frase inespecífica. Se o aluno for nomeado e não souber o que está escrevendo, poderá apresentar uma falsa conclusão, o que é um crime (art. 342, Código Penal). Então entenda: você não pode fazer um curso vagabundo, se inscrever no site do Tribunal do seu Estado, comprar um certificado digital e aguardar as nomeações. Não vai entender os termos jurídicos, não vai conhecer a sequência processual. Será um vexame logo na sua primeira nomeação.

A fase pericial sempre está contida fase de instrução do processo, antes da fase decisória (sentença judicial). Para se manifestar nos autos, você precisa conhecer o andamento e sequência de passos dentro do processo, precisa já ter lido uns vinte processos antes. Então, a primeira dica verdadeira será ler outros processos.

Um autor preciso enumera as etapas de uma perícia cível em Odontologia: decisão pela prova pericial, nomeação de um perito, pedido de honorários, depósito judicial, agendamento da data do exame, exame pericial com a presença do paciente-autor e assistentes técnicos. Depois: redação do laudo, juntada aos autos, fase de esclarecimentos, impugnações e homologação ou recusa do laudo. Outra ordem pode existir em casos de segunda perícia, por insuficiência da primeira perícia ou por anulação do laudo pericial anterior. E isso não é para novatos. Se receber uma nomeação para corrigir outra perícia, não aceita. Isso é difícil porque exige experiência.

Depois temos a “complexidade de casos”. Aqui me pareceu que a autora se referiu às especialidades – o que todos pensam que é preciso ser especialista na área de Odontologia – isso não é verdade. As perícias são multidisciplinares, a maioria das provas hoje em dia vêm por meio de radiografias e tomografias. Se o advogado do paciente pedir um especialista em Implantodontia, você pode responder que a perícia é multidisciplinar, que as provas técnicas principais serão exames de imagem (tomo e panorâmicas). Já afaste esse papo de advogado que não quer pagar, mas quer exigir um especialista.

A “pressão do tempo” já me mostrou que a autora desse blog não tinha qualquer conhecimento de perícias judiciais. O perito experiente enfrenta o excesso de tempo, a demora do fórum para impulsionar o processo. O oposto é a verdade forense porque tudo demora. Às vezes, a petição do perito pode levar três meses para ser lida. Aconteceu comigo, numa nomeação que recebi em Barueri. A autora (paciente) faltou à perícia, algumas horas depois do horário marcado para o exame, escrevi três parágrafos. Era uma folha. Foi protocolada em julho e lida em outubro, com um despacho: Intime-se o perito a reagendar a perícia. O juiz não pediu nenhuma comprovação da autora, que alegou ter sentido um mal súbito. Ele não exigiu um atestado médico e mandou que eu marcasse nova data, o que me faz pagar pelo aluguel de um consultório naquela tarde. Nunca recebi nenhuma compensação financeira, mas aprendi. Segunda dica verdadeira: nunca agende uma perícia por dia. A não ser que você não pague pelo espaço. No caso da maioria dos peritos iniciantes, que precisam de renda extra, pense sempre na possibilidade da falta do cliente e do descaso de um juiz ou outro. A falta da parte é uma desvantagem da carreira de perito, mas com o tempo você aprenderá a lidar com isso.

Então tivemos uma frase “Portanto, é fundamental que haja uma uniformização dos critérios e procedimentos para garantir a qualidade e a confiabilidade dos laudos e pareceres”. Quais são os critérios? Quais são os procedimentos? Já notou que tudo é genérico nessa apresentação de curso on-line.

Se eu quiser escrever sobre os critérios para avaliação da qualidade de um laudo pericial, eu diria de modo concreto:

Língua portuguesa: excesso de frases em ordem indireta, excesso de voz passiva e juridiquês. Exemplos:

 

A petição foi indeferida pelo juiz (ordem indireta). Escreva na ordem direta: O juiz indeferiu a petição.

 

Os quesitos não foram respondidos pelo perito (voz passiva). Escreva na voz ativa: O perito não respondeu aos quesitos.

 

Com clareza solar, a requerida não cumpriu as obrigações dela (juridiquês). Não use. Escreva simplesmente que a requerida não cumpriu suas obrigações e especifique quais foram as obrigações: A requerida não cumpriu as obrigações para entregar o implante e a coroa unitária.

 

Existe um livro ótimo sobre o tema. Aliás, o único do qual você aprenderá sobre redação jurídica, do Professor Antônio Gidi. Nascido na Bahia, ele leciona nos Estados Unidos, onde há preocupação séria no combate ao juridiquês, como ele explica no começo de seu livro, Redação Jurídica Profissional.

 

Falta de fundamentação: sempre junte alguma literatura aos seus laudos. Nunca escreva com a voz dentro de sua cabeça. Exemplo:

E por último, evitar o texto prolixo em respeito ao tempo do leitor[1] : “Se o texto é repetitivo, a tarefa de ler passa a ser difícil, cansativa, enfadonha. O leitor pode se irritar e abandonar a leitura, ou pular algumas partes e não entender bem o texto”. Afinal na conclusão de Antônio Gidi[2] : o leitor ocupado não vai reler a mesma ideia várias vezes sem se aborrecer.

 

Isso é qualidade num texto pericial, com fontes literárias. Um laudo dever ter suas referências no rodapé sempre. Um exemplo retirado da literatura odontológica:

 

Quesito 2 - Diga o Perito, quais foram os exames solicitados pela Requerida para sugerir e iniciar o tratamento? Os exames solicitados foram suficientes? Era necessário/recomendável a prescrição de exames complementares? A não solicitação de exames complementares como dito anteriormente influenciou no insucesso do tratamento?

Foram insuficientes. A literatura[3] é clara sobre a segurança da avaliação do paciente na fase pré-operatória.

Das áreas edêntulas faz-se necessário o pedido de tomografias, pois só assim a(o) profissional pode ter uma visão tridimensional da região a ser operada, bem como medidas reais do volume ósseo disponível. Em algumas situações, é possível pedir protótipos associados as tomografias para auxiliar no planejamento do caso. 

Use sempre uma fonte menor e um recuo maior para transcrever citações com mais de três linhas, como no caso acima. Isso gera um aspecto estético ao texto. Quando puder, leio algum livro sobre tipografia.

Confiabilidade: o termo foi inespecífico. O laudo terá um dos dois valores lógicos dentro do processo: será homologado ou será recusado. Ter um laudo recusado é grave. O perito novato nunca mais será chamado naquela vara ou por aquele juiz. Então, não se aventure. Saiba o que está fazendo. Esses cursinhos do Instagram não contam as enrascadas que o novato pode se meter. Não contam por que o instrutor do curso nunca fez uma perícia odontológica.

Depois, a autora do blog escreveu “atualização constante”. Isso é falso.

A justiça cível é lenta nas mudanças e um laudo em Odontologia não exige conhecimentos de tecnologia, biomateriais ultra avançados ou participação nos últimos congressos. Uma vez ouvi de um assistente técnico já experiente que me disse me meus laudos eram inválidos porque eu usava referências de livros, no caso ele se referiu ao Caminhos da Polpa, Cohen. Na opinião dele, eu deveria segui-lo e responder aos quesitos usando literatura científica, apenas escrever sobre o mais moderno.

No caso, um tratamento endodôntico realizado numa clínica popular, com sub-obturação. Não acredito nesse tipo de colocação, foi apenas um modo de se justificar para o dentista que o contratou para justificar seu “copia e cola” na produção dos quesitos. Se quiser citar algum texto científico, junte-o integralmente ao laudo, mesmo que seja em inglês. E cuidado para não entrar por um caminho da ultra tecnologia quando está lidando com um caso de uma clínica popular que custou R$ 1.200,00. São realidades diferentes. Então, foque-se na realidade do processo cível que está na sua frente, não em congressos em Estocolmo ou Viena.

Dicas verdadeira para o perito iniciante

Quando quiser iniciar-se na carreira da perícia judicial, não improvise. Comece com  a meta de aprender a procurar processos cíveis no site do tribunal de Justiça do seu estado. Normalmente, duas opções existem para procurá-los: banco de sentenças ou jurisprudência.

Digite algum termo odontológico, como: implantes dentários, tratamento endodôntico, ortodontia. Procure alguns processos, baixe em PDF e arquive-os numa pasta no seu computador.

Leia cerca de vinte deles, se achar insuportável e chato, tenha a certeza de que você não poderá ser um perito judicial na área. A perícia exige muita leitura, que ficará mais rápida e seletiva na prática.

Depois de alguma familiarização como processos, você reconhecerá folhas que se repetirão dentro do processo, como certidões de publicação. Quando estiver lendo e vir uma dessas, pule imediatamente. Afirmo que cerca de 20% de um processo será o que usará para começar o seu laudo.

O segundo passo é aprender sobre responsabilidade civil do dentista. Mas ficará para depois.

Se gostar do que leu, entre em contato comigo.

andreamaralribeiro@hotmail.com

 

São Paulo, 26 de outubro de 2024

 

 



[1] SCHOPENHAUER, Arthur, On Style, edição de Lane Cooper, p. 232, 1952.

[2] GIDI, Redação Jurídica, Editora Podivm, Salvador, 2024, p. 67

[3] Guia para o Implantodontista, CROSP, p. 7/15 

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