Sobre
vinte cursos on-line do Instagram reprovados sobre perícia judicial em
Odontologia.
André
Eduardo Amaral Ribeiro, dentista perito no TJ-SP, com 275 nomeações até hoje.
Sempre se
fala em renda extra nas redes sociais. E estão certos. A perícia tem sido
oferecida como uma renda extra como propaganda de muitos cursos on-line mal intencionados,
com instrutores ou professores que nunca foram nomeados para ser peritos, ou
seja, são grandes fraudes. Essa indústria dos infoprodutos é perigosa, com
altas taxas de insatisfação porque seus produtos escritos são superficiais, as
apostilas e modelos de laudos.
Sempre espiono
estes sites de cursinhos de perícia judicial e ajudo muitos dentistas a fugirem
deles para não jogar dinheiro fora.
Encontrei estes
textos depois de uma aluna me perguntar se eu conhecia o curso que pretendia fazer.
Não conhecia a autora, mas espionei o site e descobri que a instrutora era
uma bibliotecária. Exatamente, uma bibliotecária ensinando a um dentista a
escrever um laudo.
Obviamente,
a bibliotecária nunca poderia ter sido nomeada para uma perícia na Justiça
Cível, por falta de diploma em Odontologia. Visitei o site dela, mal redigido e
cheio de generalidades. O texto não me disse nada. Trouxe um trecho para que o
aluno entendo a diferença entre conteúdo de qualidade e um conteúdo genérico, as
palavras em itálico são minhas:
Desafios
e Dificuldades da Profissão: A
profissão de dentista perito judicial é uma atividade que requer muita
responsabilidade e habilidade técnica, contudo, assim como em qualquer
outra profissão, existem desafios e dificuldades que precisam ser
enfrentados. Desafios: Um dos principais desafios da profissão de
dentista perito judicial é lidar com a complexidade dos casos, tendo em
vista que muitos casos envolvem questões técnicas e científicas que exigem um
conhecimento aprofundado da área. Além disso, é preciso ter uma visão crítica e
imparcial para avaliar as evidências e tomar decisões justas e equilibradas.
Outro desafio é a pressão do tempo, já que os prazos para a realização
dos laudos e pareceres são muitas vezes curtos, o que exige uma boa organização
e planejamento para entregar um trabalho de qualidade dentro do prazo
estabelecido. Dificuldades: Quanto às dificuldades enfrentadas pelos
dentistas peritos judiciais, a principal é a falta de reconhecimento da
profissão. Muitas vezes, os profissionais são vistos como meros prestadores de
serviço, sem a devida valorização e respeito pela sua expertise. Além disso, a
falta de padronização dos procedimentos e metodologias utilizadas pelos
dentistas peritos judiciais pode gerar divergências e conflitos entre os
profissionais. Portanto, é fundamental que haja uma uniformização dos
critérios e procedimentos para garantir a qualidade e a confiabilidade dos
laudos e pareceres. Outra dificuldade é a necessidade de atualização
constante, sobretudo porque a área da odontologia está em contínua
evolução, com novas técnicas e tecnologias surgindo a todo momento. Sendo
assim, os dentistas peritos judiciais devem se manter sempre atualizados e
capacitados para lidar com as demandas da profissão.
Os termos
indefinidos já indicaram que a autora nada sabia sobre o que escreveu. Note o “muita
responsabilidade” como é uma frase inespecífica. Se o aluno for nomeado e
não souber o que está escrevendo, poderá apresentar uma falsa conclusão, o que
é um crime (art. 342, Código Penal). Então entenda: você não pode fazer
um curso vagabundo, se inscrever no site do Tribunal do seu Estado, comprar um
certificado digital e aguardar as nomeações. Não vai entender os termos
jurídicos, não vai conhecer a sequência processual. Será um vexame logo na sua
primeira nomeação.
A fase
pericial sempre está contida fase de instrução do processo, antes da fase
decisória (sentença judicial). Para se manifestar nos autos, você precisa
conhecer o andamento e sequência de passos dentro do processo, precisa já ter
lido uns vinte processos antes. Então, a primeira dica verdadeira será
ler outros processos.
Um autor
preciso enumera as etapas de uma perícia cível em Odontologia: decisão pela
prova pericial, nomeação de um perito, pedido de honorários, depósito judicial,
agendamento da data do exame, exame pericial com a presença do
paciente-autor e assistentes técnicos. Depois: redação do laudo, juntada aos
autos, fase de esclarecimentos, impugnações e homologação ou recusa do
laudo. Outra ordem pode existir em casos de segunda perícia, por insuficiência
da primeira perícia ou por anulação do laudo pericial anterior. E isso não é
para novatos. Se receber uma nomeação para corrigir outra perícia, não aceita.
Isso é difícil porque exige experiência.
Depois
temos a “complexidade de casos”. Aqui me pareceu que a autora se referiu
às especialidades – o que todos pensam que é preciso ser especialista na área
de Odontologia – isso não é verdade. As perícias são multidisciplinares, a
maioria das provas hoje em dia vêm por meio de radiografias e tomografias. Se o
advogado do paciente pedir um especialista em Implantodontia, você pode
responder que a perícia é multidisciplinar, que as provas técnicas principais
serão exames de imagem (tomo e panorâmicas). Já afaste esse papo de advogado
que não quer pagar, mas quer exigir um especialista.
A “pressão
do tempo” já me mostrou que a autora desse blog não tinha qualquer
conhecimento de perícias judiciais. O perito experiente enfrenta o excesso de
tempo, a demora do fórum para impulsionar o processo. O oposto é a verdade
forense porque tudo demora. Às vezes, a petição do perito pode levar três meses
para ser lida. Aconteceu comigo, numa nomeação que recebi em Barueri. A autora
(paciente) faltou à perícia, algumas horas depois do horário marcado para o
exame, escrevi três parágrafos. Era uma folha. Foi protocolada em julho e lida
em outubro, com um despacho: Intime-se o perito a reagendar a perícia. O juiz
não pediu nenhuma comprovação da autora, que alegou ter sentido um mal súbito.
Ele não exigiu um atestado médico e mandou que eu marcasse nova data, o que me
faz pagar pelo aluguel de um consultório naquela tarde. Nunca recebi nenhuma
compensação financeira, mas aprendi. Segunda dica verdadeira: nunca
agende uma perícia por dia. A não ser que você não pague pelo espaço. No caso
da maioria dos peritos iniciantes, que precisam de renda extra, pense sempre na
possibilidade da falta do cliente e do descaso de um juiz ou outro. A falta da
parte é uma desvantagem da carreira de perito, mas com o tempo você aprenderá a
lidar com isso.
Então
tivemos uma frase “Portanto, é fundamental que haja uma uniformização dos
critérios e procedimentos para garantir a qualidade e a confiabilidade dos
laudos e pareceres”. Quais são os critérios? Quais são os procedimentos? Já
notou que tudo é genérico nessa apresentação de curso on-line.
Se eu
quiser escrever sobre os critérios para avaliação da qualidade de um laudo
pericial, eu diria de modo concreto:
Língua
portuguesa: excesso de frases em ordem indireta, excesso de voz
passiva e juridiquês. Exemplos:
A petição foi indeferida pelo juiz (ordem indireta). Escreva na ordem direta: O juiz
indeferiu a petição.
Os quesitos não foram respondidos pelo perito (voz passiva). Escreva na voz ativa: O perito não
respondeu aos quesitos.
Com clareza solar, a requerida não cumpriu as obrigações dela (juridiquês). Não use.
Escreva simplesmente que a requerida não cumpriu suas obrigações e especifique
quais foram as obrigações: A requerida não cumpriu as obrigações para entregar
o implante e a coroa unitária.
Existe um livro ótimo sobre o tema.
Aliás, o único do qual você aprenderá sobre redação jurídica, do Professor
Antônio Gidi. Nascido na Bahia, ele leciona nos Estados Unidos, onde há
preocupação séria no combate ao juridiquês, como ele explica no começo de seu
livro, Redação Jurídica Profissional.
Falta
de fundamentação: sempre junte alguma literatura aos seus laudos. Nunca
escreva com a voz dentro de sua cabeça. Exemplo:
E por último, evitar o texto prolixo em respeito ao
tempo do leitor[1] : “Se o
texto é repetitivo, a tarefa de ler passa a ser difícil, cansativa, enfadonha.
O leitor pode se irritar e abandonar a leitura, ou pular algumas partes e não
entender bem o texto”. Afinal na conclusão de Antônio Gidi[2]
: o leitor ocupado não vai reler a mesma ideia várias vezes sem se aborrecer.
Isso é qualidade num texto pericial, com
fontes literárias. Um laudo dever ter suas referências no rodapé sempre. Um
exemplo retirado da literatura odontológica:
Quesito
2 - Diga o Perito, quais foram os exames solicitados pela Requerida para
sugerir e iniciar o tratamento? Os exames solicitados foram suficientes? Era
necessário/recomendável a prescrição de exames complementares? A não
solicitação de exames complementares como dito anteriormente influenciou no
insucesso do tratamento?
Foram insuficientes. A literatura[3]
é clara sobre a segurança da avaliação do paciente na fase pré-operatória.
Das áreas edêntulas faz-se
necessário o pedido de tomografias, pois só assim a(o) profissional pode ter
uma visão tridimensional da região a ser operada, bem como medidas reais do
volume ósseo disponível. Em algumas situações, é possível pedir protótipos
associados as tomografias para auxiliar no planejamento do caso.
Use sempre uma fonte menor e um recuo maior para transcrever citações
com mais de três linhas, como no caso acima. Isso gera um aspecto estético ao
texto. Quando puder, leio algum livro sobre tipografia.
Confiabilidade: o termo foi inespecífico.
O laudo terá um dos dois valores lógicos dentro do processo: será homologado ou
será recusado. Ter um laudo recusado é grave. O perito novato nunca mais será
chamado naquela vara ou por aquele juiz. Então, não se aventure. Saiba o que
está fazendo. Esses cursinhos do Instagram não contam as enrascadas que o
novato pode se meter. Não contam por que o instrutor do curso nunca fez uma
perícia odontológica.
Depois, a
autora do blog escreveu “atualização constante”. Isso é falso.
A justiça
cível é lenta nas mudanças e um laudo em Odontologia não exige conhecimentos
de tecnologia, biomateriais ultra avançados ou participação nos últimos
congressos. Uma vez ouvi de um assistente técnico já experiente que me disse me
meus laudos eram inválidos porque eu usava referências de livros, no caso ele
se referiu ao Caminhos da Polpa, Cohen. Na opinião dele, eu deveria segui-lo e
responder aos quesitos usando literatura científica, apenas escrever sobre o
mais moderno.
No caso,
um tratamento endodôntico realizado numa clínica popular, com sub-obturação. Não
acredito nesse tipo de colocação, foi apenas um modo de se justificar para o
dentista que o contratou para justificar seu “copia e cola” na produção
dos quesitos. Se quiser citar algum texto científico, junte-o integralmente ao
laudo, mesmo que seja em inglês. E cuidado para não entrar por um caminho da
ultra tecnologia quando está lidando com um caso de uma clínica popular que
custou R$ 1.200,00. São realidades diferentes. Então, foque-se na realidade do
processo cível que está na sua frente, não em congressos em Estocolmo ou Viena.
Dicas verdadeira para o perito iniciante
Quando
quiser iniciar-se na carreira da perícia judicial, não improvise. Comece com a meta de aprender a procurar processos cíveis
no site do tribunal de Justiça do seu estado. Normalmente, duas opções existem
para procurá-los: banco de sentenças ou jurisprudência.
Digite
algum termo odontológico, como: implantes dentários, tratamento endodôntico,
ortodontia. Procure alguns processos, baixe em PDF e arquive-os numa pasta no
seu computador.
Leia cerca
de vinte deles, se achar insuportável e chato, tenha a certeza de que você não
poderá ser um perito judicial na área. A perícia exige muita leitura, que
ficará mais rápida e seletiva na prática.
Depois de
alguma familiarização como processos, você reconhecerá folhas que se repetirão
dentro do processo, como certidões de publicação. Quando estiver lendo e vir
uma dessas, pule imediatamente. Afirmo que cerca de 20% de um processo será o
que usará para começar o seu laudo.
O segundo
passo é aprender sobre responsabilidade civil do dentista. Mas ficará para
depois.
Se gostar
do que leu, entre em contato comigo.
andreamaralribeiro@hotmail.com
São Paulo,
26 de outubro de 2024
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