domingo, 27 de março de 2022

Nosso trabalho científico publicado na Revista da Associação Médica Brasileira, março de 2022 - original em inglês, versão em português.

 

Condenações cíveis na área de saúde e sua relação com o  blanket consent em julgados de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

RESUMO: Estudo de cinco acórdãos julgados em 2020 e 2021. Todos eles versavam sobre tratamentos de saúde (estéticos, preventivos ou curativos), nos quais observamos que: (i) em todos eles houve a determinação de produção de prova pericial; (ii) em todos eles, a prova pericial nada apontou no sentido de más práticas profissionais; (iii) em todos os casos houve condenação dos profissionais de saúde, embora a prova pericial tenha apontado a correição dos procedimentos; (iv) o fundamento para a condenação foi a falta de informação clara, prévia e completa ao paciente; (v) todos os casos indicaram expressamente o acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018); (vi) o termo pesquisado é um estrangeirismo: blanket consent, não foi visto na parte decisória dos cinco julgados da corte paulista; (vii) poderíamos traduzir o termo por consentimento genérico, (viii) o termo ainda não se tornou comum na redação estrita de acódãos no TJ-SP, embora todos os julgados tenham seguido os julgados do STJ: REsp 1540580/DF -- 5. Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado.

Unitermos: termo de consentimento, informação genérica, blanket consent.

 

Introdução:

As decisões por câmaras de segundo grau no Tribunal de Justiça vêm se balizando por um recurso especial julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, RECURSO ESPECIAL Nº 1.540.580 – DF.

Isso parece introduzir mais uma preocupação para os profissionais de saúde que se preocupam com o consentimento detalhado ao paciente. Uma vez que embora existente alguma forma de consentimento, os Magistrados podem considerá-lo nulo, por meio do decreto de ser um consentimento genérico, chamado também de blanket consent.

 

Objetivo: estudar processos nos quais se viu a decisão condenatória e verificar o que houve em comum entre os processos estudados. Em todos eles houve menção ao julgado do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

 

Método: a pesquisa foi feita no item Jurisprudência, no site www.tjsp.jus.br , usado unicamente o termos blanket consent. Então, a ferramenta de pesquisa do Tribunal trouxe 17 processos julgados e transitados em julgado. A pesquisa foi realizada na segunda semana de novembro de 2021 pelos próprios autores. Os julgados deveriam ter  diretamente a indicação expressa do acórdão do STJ - REsp 1.540.580-DF. Essa indicação expressa foi requisito para o processo ser considerado e avaliado pelos autores.

 

Casos escolhidos em razão de quatro requisitos presentes:

 

Caso 1: autora fez exame de holter por 24 horas. No momento da retirada do aparelho, notou manchas na pele, que lhe causaram deboche de seus alunos porque é professora da rede pública. A perícia afastou imperícia no exame de holter. Indicação expressa do acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

Decisão dos desembargadores se deu pela falha de informação no momento do pré-atendimento porque a clínica requerida entregou apenas um folheto informativo sobre o uso do aparelho. Tal folheto foi julgado inválido porque não demonstrou a aceitação da autora, por falta de assinatura.

Condenação em segundo grau: R$ 5.000,00 por danos morais.

Transcrição de trecho da decisão:

No caso concreto a requerida sequer refuta que não apresentou nos autos documento assinado que comprove o dever de informação, não houve prova de qualquer informação que deveria ser prestada à autora, seja sobre a possibilidade de formação de cicatrizes evidentes, surgimento de manchas na pele, descoloração ou pigmentação cutânea na área de fixação dos eletrodos, entre outras, ou seja, inequívoco o descumprimento do dever de informação. Apelação Cível nº 1014524-26.2019.8.26.0161 -Voto nº 12939.

 

Caso 2:  autora submetida à cirurgia para a exérese de uma tuba uterina. No entanto, durante a cirurgia, ambas as trompas uterinas foram removidas. No entanto, a segunda trompa era sã. Autora não consentiu previamente nenhuma intervenção na segunda trompa. O médico tem o dever inarredável de informar.

Testemunhas foram convergentes sobre a correição do procedimento cirúrgico. Indicação expressa do acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

 

Condenação em segundo grau: R$ 10.000,00 por danos morais.

Transcrição de trecho da decisão:

 

O que se conclui, de todos os elementos coligidos, é que, apesar de correto, o procedimento de retirada da trompa saudável foi efetivado sem o prévio e imprescindível consentimento da demandante. No caso, a autora tinha pleno conhecimento de que seria retirada uma de suas trompas, em razão de gravidez ectópica previamente diagnosticada, porém, não sabia que também seria removida a outra, saudável, o que configura violação do dever de informação, um dos mais relevantes na relação médico-paciente. Apelação nº 1017092-69.2017.8.26.0004 -Voto nº 40041

 

Caso 3: Autora submetida a cirurgias plásticas nas pálpebras e nas mamas. Cicatrizes hipertróficas, assimetria das mamas. Embora o laudo pericial tenha apontado correição no procedimento cirúrgico, os julgadores entenderam que a autora não estava esclarecida dos riscos, perigos e desvantagens que os procedimentos poderiam causar. Duas cirurgias com tentativa de correção da estética das mamas, mas a autora faleceu por outras causas não relacionadas às consequências da cirurgia.

Indicação expressa do acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

Condenação em segundo grau: R$ 25.000,00 por danos morais.

Transcrição de trecho da decisão:

 

Conforme se observa dos documentos médicos juntados aos autos, e conforme laudo de perícia médica, a autora, em 16.12.2013, visando à correção de sinais de expressão ao redor da boca e à correção em pálpebras inferiores e superiores, realizou o procedimento cirúrgico denominado “retidectomia” (fls. 43 e 221 registro de entrada; fls. 223/224 prontuário médico), além de ser submetida também à troca de próteses mamárias em 11.02.2014 (fls. 43). Incontroverso, portanto, que as intervenções a que fora submetida a autora tiveram única e exclusiva finalidade plástica visando à legítima expectativa de obter resultado embelezador e melhora da sua aparência, de modo que a obrigação assumida pelo cirurgião plástico réu se caracterizou como obrigação de resultado. Com efeito, de acordo com o laudo pericial produzido, a cirurgia facial de retidectomia a que fora submetida a autora não é isenta de riscos, assim como as complicações alegadas pela autora na cirurgia mamária são passíveis de ocorrência.

Logo, a falta de informação pelo médico ao paciente é considerada ilícito contratual, configurando culpa do profissional na modalidade de negligência (omissão no dever de informar), a ensejar de reparar os danos morais. Apelação Cível nº 0002255-87.2015.8.26.0653 -Voto nº 6955

 

 

Caso 4: Autor se submeteu a artroplastia para colocação de prótese total em joelho. Infecção pós-operatória que levou ao óbito do autor. A prova pericial concluiu que o diabetes e a idade avançada do autor foram fatores complicadores para a recuperação após a cirurgia, e em razão das patologias, motivaram a infecção grave. O autor faleceu. Embora com laudo pericial favorável aos médicos, os julgadores entenderam que houve falha no dever de prestar informações prévias. Tratamento da infecção inclusive com amputação parcial de membro.

Indicação expressa do acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

 

 

Condenação em segundo grau: R$ 40.000,00 por danos morais.

Transcrição de trecho da decisão:

 

Em sequência, firmou “Termo de Consentimento Esclarecido para Procedimento Cirúrgico” (fls. 2417), redigido nos seguintes termos:

“(...) 2) Recebi todas as informações necessárias quanto aos riscos, benefícios, alternativas de tratamento, bem como fui informado sobre os riscos e benefícios de não ser tomada nenhuma atitude terapêutica diante da natureza da(s) enfermidade(s) diagnosticada(s).

3) Compreendo que durante os exames e/ou procedimentos: ____________________, para tentar curar, ou melhorar as supracitada(s) condição(ões), poderá(ão) ocorrer situação(ões) imprevisível(eis) ou fortuitas.

4) Estou ciente de que em procedimentos médicos invasivos, como o citado, podem ocorrer complicações gerais, como sangramento, infecção, problemas cardiovasculares e respiratórios e outros (...)”.

 

Entretanto, apesar das inúmeras terapias e tratamentos dispensados ao Sr. Alexandre, tais como desbridamento cirúrgico da infecção, retirada de prótese, curativo a vácuo, e “conduta extrema de amputação ao nível da coxa” no dia 22.02.2016 (fls. 1587/2199), permaneceu sob os cuidados da equipe da UTI, evoluiu com várias complicações, vindo aóbito no dia 13.03.2016, com “insuficiência de múltiplos órgãos, choque séptico, infecção de partes moles e insuficiência renal” (fls. 13).

Nota-se, portanto, pelos esclarecimentos prestados pelo perito e pelas respostas dadas aos quesitos, que a presença de comorbidades como a diabetes e debilidade imunológica, associada à idade avançada do paciente (83 anos) foram fatores que teriam prejudicado a evolução cirúrgica e motivaram o quadro infeccioso que acometeu o Sr. Alexandre.

Ora, se o nosocômio já tinha pleno conhecimento do histórico médico do paciente, inclusive tendo submetido à avaliação clínica pré-operatória (fls. 2454), tendo constatado na ocasião os mencionados riscos aqui citados pela AACD que aumentam a probabilidade de complicações, surge a dúvida se a cirurgia deveria ter sido realizada, conforme bem salientaram os autores.

Ademais, é obrigação de o médico esclarecer ao seu paciente tudo o que está relacionado à enfermidade e as chances de causar algum efeito não esperado. O diagnóstico, prognóstico, procedimentos, benefícios, reações adversas, entre outras informações pertinentes ao tratamento devem ser muito bem esclarecidas.

No caso, os esclarecimentos contidos no “Termo de Consentimento Esclarecido para Procedimento Cirúrgico” (fls. 2417) foram insuficientes, pois descreve complicações semelhantes às que ocorrem em outros procedimentos cirúrgicos como sangramento, infecção, problemas cardiovasculares e respiratórios, mas o paciente não foi informado da possibilidade de complicações mais graves, no caso específico do Sr. Alexandre, por ser ele portador de comorbidades, associada à idade avançada, do risco aumentado para infecção pós-operatória.

Para essa indenização, o valor equivalente a R$ 40.000,00 para cada um dos autores é bastante razoável para recompor os prejuízos sofridos pelos autores e a reprimir o ato, sem implicar enriquecimento a quem recebe. Apelação Cível nº 1045020-32.2016.8.26.0100 -Voto nº 7251

 

Caso 5: autora se submeteu a cirurgia no aparelho reprodutor feminino. Diagnóstico de adenomiose e colecistopatia calculosa, após as quais se indicou a cirurgia de histerectomia total abdominal. O laudo pericial concluiu que não houve falha na técnica cirúrgica.

Com isso, de fato a hipótese era de improcedência dos pedidos de indenização por dano material e moral baseados em suposta falha na realização do procedimento cirúrgico em si.

Indicação expressa do acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

Condenação em segundo grau: R$ 15.000,00 por danos (material e moral).

 

Transcrição de trecho da decisão:

 

No entanto, a causa de pedir da ação não se limitou ao alegado defeito da técnica cirúrgica utilizada para tratamento da autora, mas também compreendeu suposta falha nas informações prestadas pela médica ré àquela. De fato, tratando-se de relação de consumo, o profissional prestador de serviço tem o dever de informar com exatidão o diagnóstico do paciente, bem como o procedimento realizado para o tratamento e riscos a ele relacionados (art. 6º, inciso III, CDC).

Assim, considerando-se a gravidade da conduta da médica ré e a extensão do dano experimentado pela demandante, tem-se como adequado o quantum indenizatório fixado em R$ 15.000,00 pelo magistrado de origem, valor que observa os princípios da proporcionalidade e razoabilidade na hipótese, não se justificando a majoração pretendida pela autora. Apelação Cível nº 1002545-82.2017.8.26.0405 -Voto nº 24402

 

Discussão:

Por experiência dos autores em encargos periciais, o consentimento informado prévio dado ao paciente muitas vezes não existe. Este seria o aspecto quantitativo: dois valores lógicos – ausentes ou presentes.

Já no aspecto qualitativo, o termo existe concretamente em forma escrita. No entanto, durante o julgamento, o termo de consentimento passa pela avaliação dos desembargadores para outros valores lógicos: genérico ou completo.

Nos cinco casos avaliados pelos autores, houve a produção de prova pericial favorável aos profissionais de saúde. Na maioria dos casos na área da saúde, a prova pericial é usada como única e suficiente para o julgamento do feito. Muito embora, a conclusão favorável da prova pericial, não houve absolvição das equipes de saúde. Isso chamou a atenção dos autores, que resolveram pesquisar essa suposta segurança. Ou seja, por consequência lógica: se a prova pericial fosse favorável, haveria a absolvição.

Houve a condenação cível nos cinco casos estudados. Em comum, distintas câmaras de julgamento citaram diretamente o REsp 1540580-DF julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Como condições para a inclusão do julgado na pesquisa: (a) o termo de consentimento deveria estar presente e deveria ser escrito – então, descartados casos em que houve explicação vocal por parte dos profissionais de saúde; (b) a prova pericial deveria ser favorável às equipes de saúde; (c) deveria haver condenação cível das equipes de saúde; (d) o dispositivo REsp 1540580 deveria ser obrigatoriamente transcrito no acórdão.

Com os quatro requisitos cumpridos, o feito foi avaliado.

 

 

 

 

Conclusão.

Embora a prova pericial não tenha apontado falhas nos procedimentos cirúrgicos, houve condenação cível das equipes de saúde. A análise do dever da informação coube aos magistrados de 2ª Grau no TJ-SP, que aplicaram suas interpretações sobre o valor do conteúdo daquele que supostamente seria o termo de livre consentimento. Dessa interpretação, condenaram os profissionais de saúde, independentemente das conclusões do laudo pericial. Ou seja, a prova pericial não foi absoluta/única na decisão das câmaras de segundo grau, uma vez que nos cinco casos, as provas periciais apontaram correição dos procedimentos, o que não foi automático para a absolvição dos profissionais de saúde.

Os magistrados das câmaras cíveis do TJSP pautuaram pelo julgado do STJ, no qual se emprega o termo estrangeiro blanket consent. No entanto, o termo não é estritamente usado em língua inglesa no Tribunal Paulista.

 

 

Referências:

Bioética clínica: reflexões e discussões sobre casos selecionados. / Coordenação de Gabriel Oselka. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Centro de Bioética, 2008.

 

Inadequate record keeping by dental practitioners, LF Brown, School of Dentistry, The University of Queensland, Brisbane. Australian Dental Journal, 2015.

 

Recent research into healthcare professions regulation: a rapid evidence assessment; Julie Browne; Cardiff University, Cardiff Unit for Research and Evaluation in Medical andDental Education (CUREMeDE), Cardiff, Wales, 2021.

 

WhatsApp in Clinical Practice: A Literature Review; Maurice MARS and Richard E SCOTT

 Dept of TeleHealth, University of KwaZulu-Natal, South Africa, NT Consulting - Global e-Health Inc., Calgary, AB, Canada

 

Superior Tribunal de Justiça, <www.stj.jus.br>

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, <www.tjsp.jus.br>

 

 

 

 

 

 

 

RELATO DE CASO: A assistente técnica Juliana.

 

 

Não é raro trabalharmos em uma perícia na qual existe um assistente técnico calado até o fim da perícia. Ele fica apenas como um enfeite, sentado e assistindo o autor queixar-se, sem intervir, sem contestar, sem interromper.

E muitas vezes essa postura passiva é o que causa o desastre para aquele que contratou o “assistente calado”.

Vou exemplificar com um caso real, no qual uma paciente ajuizou uma ação cível contra uma clínica odontológica em razão de não ter recebido o tratamento com lentes de contato.

Fui nomeado como perito em um fórum regional de São Paulo, com o dever de apurar os pontos controvertidos fixados pelo Juízo:

Quesitos judiciais:

1. Quais foram os serviços contratados pela autora junto à ré? Especificá-los.

2. Dentre os serviços quais eram reparadores e quais estéticos?

3. Os serviços contratados e executados pela ré foram prestados dentro da

melhor técnica profissional?

4. O que é mockup e para que serve?

5. O outro profissional que atendeu a autora posteriormente à ré agiu de forma a prejudicar o resultado da prova pericial produzida nos autos da ação de produção antecipada de provas (laudo de f. 34/62) e em que medida?

Foi trabalhoso, mas consegui apurar todos os pontos controvertidos – dentro das limitações do perito.

O que ocorreu no momento da perícia?

Em um consultório em São Paulo, eu me sentei na mesa de escritório na frente de meu notebook, com duas cadeiras do outro lado da mesa: na primeira, a autora; na segunda, a assistente técnica da clínica requerida.

Preciso dizer que filmo todas as perícias. Isso em caso de alegações de parcialidade no momento da impugnação do laudo pericial.

Ambas estavam de frente para mim. Eu escolhi trabalhar dessa maneira. A maioria dos peritos gosta de sentar o paciente no equipo, com o assistente em pé ou sentado em outro mocho. Cada perito faz de seu jeito: alguns sentam em um mocho, outros ficam em pé. Eu gosto de trabalhar na mesa de escritório porque posso anotar a lápis os pontos do relato do paciente.

A autora chorava e contava seu caso, eu me mantive firme diante das lágrimas, pois nunca se sabe se o choro é natural ou se é uma tentativa de comover o perito. Ela explicou todos os detalhes: foram cerca de 18 meses de idas e vindas a tal clínica sem uma conclusão das lentes de contato da arcada superior, já contratadas e já pagas.

A análise do prontuário mostrava que esses muitos retornos de fato ocorreram e que houve sete repetições nas moldagens e provas de mock-ups na autora. Ela teria ficado exausta e com seus dentes superiores desgastados. Segundo ela, teria levado sua vida com os dentes com esmalte desgastado e teve seu cotidiano normal. Ou seja, as pessoas na rua viam que havia algo estranho em seus dentes.

Mas quero explicar outra coisa: a postura da assistente técnica da requerida. Ela permaneceu calada, não interveio em alguns pontos que me pareceram exageros da autora. A autora falou por cerca de quarenta minutos, muitas vezes fugindo do assunto e, nesses momentos, eu falava algo para voltarmos ao assunto.

Vamos chamar a assistente técnica de Juliana – nome fictício.

É bem difícil ouvir queixas de pacientes em perícias, em especial quando o paciente é prolixo e se afasta cada vez mais dos assuntos. No caso, eu sempre trabalho com os pontos controvertidos na tela do meu notebook e tento manter todos os presentes dentro desse tema.

O relato continuava. Vinte minutos. Eu olhava para Juliana e pensava “vamos, pergunte alguma coisa!” e nada. A autora começou a falar de sua filha e fugir ainda mais dos ocorridos durante o tratamento, mas Juliana seguia como espectadora. Aquilo começou a me irritar porque eu via muitas brechas na qual entendia que a tal assistente Juliana deveria se manifestar, deveria defender sua cliente. Mas a cara de paisagem de Juliana continuava.

A autora terminou seu relato. Foram quarenta longos minutos. Como de costume, gravei o áudio de tudo que foi dito para ouvir depois, quando estivesse redigindo meu laudo.

Provoquei Juliana: “Doutora, quer dizer alguma coisa? Quer perguntar alguma coisa para a autora?”. Sequer ela emitiu um som, apenas fez um não com a cabeça.

Pensei nas possibilidades para tal comportamento passivo da tal assistente: Juliana teria ela lido o processo? Seria esta a primeira perícia que Juliana teria participado na vida? Por que ela estaria lá? Juliana recebeu um pagamento para vir aqui?

Cheguei a pensar se ela não seria apenas uma amiga da parte requerida que estaria ali apenas para marcar presença.

Depois eu descobri que ela recebera pelo trabalho sim. Também pesquisei o nome de Juliana no Google: ela era especialista em Odontologia Legal, tinha até doutorado. Fiquei mais curioso. Ainda descobri que ela lecionava Odontologia Legal em uma faculdade.

Pensei: será que isso não é alguma pegadinha? Porque não poderia ser real tal comportamento de Juliana, uma total indiferença com a realidade, uma total passividade. A verdade é que alguém a contratou, pagou e Juliana prejudica seu cliente dessa forma? Achei um absurdo, uma traição.

E de fato foi uma traição.

A sentença saiu com condenação da clínica requerida em danos materiais, morais e estéticos. O pior cenário possível.

Mas o mais interessante vem agora. Juliana se aventurou a escrever um parecer com grande agressividade, insultando-me, reduzindo-me a zero, com frases agressivas na narrativa dela. No entanto, nada citou sobre as passagens do processo. Entendi, então, o que tinha ocorrido: Juliana não só não tinha lido o processo antes da perícia (dever de todo assistente técnico), mas também não lera o processo para escrever seu parecer contrário ao meu laudo pericial.

A situação era um total absurdo. Uma audácia sem tamanho.

Insultos desconexos, acusações, ideias soltas – tudo contra mim como pessoa. A lição que gostaria de deixar é essa: quando for escrever um parecer, escreva atacando o trabalho do perito. Nunca escreva atacando a pessoa do perito.

Tal regra foi observada de modo contrário pela assistente Juliana. Ela preferiu atacar a PESSOA DO PERITO. Não atacou o trabalho do perito.

Bem, respondi a todos os insultos, pedi uma multa judicial contra o comportamento de Juliana. A Juíza de Direito do caso era minha conhecida há muitos anos, já tinha me nomeado mais de trinta vezes para perícias na vara cível dela. Melhor assim, porque não correria o risco de que a Juíza acreditasse naquela avalanche de mentiras.

Em suma: o assistente técnico pode acabar com todo o trabalho feito pelos advogados. Um assistente passivo como Juliana te trai e leva seu dinheiro sem lhe dar nenhuma contraprestação. Escrevi no laudo acerca da passividade de Juliana, de seu silêncio, de sua indiferença.

Acho uma grande sacanagem esse tipo de comportamento. Mas esse caso não acabou bem para Juliana. Lembram que eu disse que filmava todas as perícias? Então, a advogada da requerida enviou um e-mail e me pediu para enviar o vídeo para ela. Compartilhei o arquivo de 2 GB pelo One Drive da Microsoft.

A advogada assistiu tudinho e me escreveu agradecendo. Soube que agora Juliana enfrenta uma ação cível promovida pelos clientes e ainda vai enfrentar uma ação ética no CROSP. Nada mais justo.

O que oriento aos advogados: contratem um assistente técnico e peçam para que ele grave o áudio da perícia ou até mesmo filme a perícia. O cliente tem o direito e o dever de avaliar o trabalho de seu assistente técnico.

Já o assistente tem o dever de lutar pelo seu cliente. Sempre há muito para dizer, sempre há o que impugnar. Posturas passivas como a de Juliana não podem mais ser aceitas.

Acho que ajudei um pouquinho os advogados.

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