quarta-feira, 5 de março de 2025

Os riscos ocultos do turismo médico para o dentista e as consequências para o profissional. Gestão de risco.

 

Os riscos ocultos do turismo médico para o dentista e as consequências para o profissional. Gestão de risco.

 

André Eduardo Amaral Ribeiro[1], dentista em São Paulo.

Março de 2025.

Palavras-chave: #quesitos #odontologia #periciajudicial #odontologialegal


Vejo fotos de profissionais com pessoas que vieram de países com moeda valorizada, como os Estados Unidos e Europa, para receberem cirurgias e tratamento dentários aqui no Brasil. Também conheci uma dentista, poliglota, que criou uma empresa de turismo de saúde com a qual trabalha para trazer franceses e italianos para tratamentos em Cirurgia Plástica e Odontologia para o Brasil.

Por outro lado, conheci um rapaz que foi a Istambul, Turquia, para implantar cabelos. O preço da cirurgia era um terço do preço aqui no Brasil. O pós-operatório foi um desastre e não houve socorro, em razão da distância. Vi também dentistas brasileiros concluírem em um dia reabilitações de todos os dentes, inferiores e superiores, com protocolos de Branemark e serem processados por isso. Vi garotas de vinte anos que vieram da Flórida para tratar um canal aqui no Brasil, pois gastariam U$ 2.300,00 no dentista da cidade delas lá. Os dentistas não imaginaram as consequências.

Teoricamente, não existiriam contraindicações para o tratamento, pois seriam pacientes ideais, com moeda forte no bolso e dispostos a pagar à vista.

Mas vi casos concretos: quatro processos movidos contra dentistas em 2024. Brasileiros no exterior exigiram indenizações, mas calculadas em dólares, por procedimentos refeitos nos EUA. Uma prótese fixa se transformou em um irritante processo judicial em que um reclamão voltou ao Brasil para participar de uma única audiência de vinte minutos. O paciente viveu duas semanas no Brasil e procurou sua dentista para corrigir a ausência de um pré-molar superior, visível no sorriso. O tratamento correu às pressas, pois a dentista pressionou o protético para entregar rápido a ponte fixa – que ligaria o canino ao segundo pré-molar superior. Concluí que a dentista teria que repetir a moldagem e o protético refazer a parte metálica da prótese fixa com três elementos. No entanto, o paciente tinha sua passagem aérea marcada e voltou aos EUA. Dez dias depois, lá nos EUA, comeu um chocolate – segundo o que ele me alegou, pois, tal prova é muito difícil de se produzir – e o pôntico quebrou. Ele se consultou com um dentista lá, que criticou o trabalho dental brasileiro, disse que teria de refazer tudo e cobrou de mais de R$ 2.000,00 dólares. No Brasil, havia custado R$ 1.500,00. Então, o paciente fez as contas e resolveu culpar sua dentista brasileira.

Por meio de processo digital, contratou um advogado no Brasil, que agravou com um pedido indenizatório. A cobrança foi calculada em dólares com câmbio alavancado, as custas do advogado, o valor foi crescendo com os danos morais e outras invenções do advogado como dano estético. A juíza determinou a perícia e fui escolhido como perito.

Minha apuração pericial concluiu: a dentista nada anotou sobre a pressão do paciente para concluir o tratamento até a data do seu voo de retorno aos EUA. Ela até foi informada, pois em outros casos, o paciente não explica onde mora – pois teme que o valor do tratamento seja inflacionado, pois imagina que o paciente ganha em dólares, então pode pagar. Já o paciente pensou com má-fé, pois ele apenas cotou os procedimentos nos EUA, sem pagá-los. Apresentou os valores como se o tratamento fosse feito. Enfim, ele voltou a viver sem a prótese, com uma falha na dentição que já carregava há mais de dez anos. A minha perícia foi feita por videochamada com o paciente e a assistente técnica da clínica dentária brasileira. O paciente era agressivo e grosso, com tom de deboche ao Brasil. No fim, apurei que ele apenas conseguiu três orçamentos nos EUA sem iniciar o retratamento. As notas fiscais americanas são diferentes das nossas brasileiras e não pude compreendê-las por inteiro. Mas não houve nenhuma prova sólida de que ele havia substituído a prótese nos EUA. Escrevi tudo isso no laudo, ele se revoltou e mudou sua estratégia. Pediu uma audiência presencial, veio ao Brasil para participar e no fim, conseguiu uma pequena indenização de R$ 6.500,00. No fim, a indenização não custeou a nem mesmo a passagem aérea.

Portanto, um processo cível de má-fé, um prejuízo razoavelmente pequeno para a clínica brasileira, um advogado que levou um dinheiro fácil e um homem que vive nos EUA e que xinga o Brasil o tempo todo, suponho. Tudo deu errado por orientações equivocadas, talvez um familiar, talvez um familiar, talvez o advogado. Como perito, já previ tudo isso: a burocracia do processo que traria esse resultado ínfimo.

Quanto à dentista brasileira, ela ficou surpresa com a minha conclusão de que deveria anotar no prontuário que o paciente morava nos EUA, e mais surpresa com minha sugestão de anotar Turismo de Saúde no prontuário. O entendimento muda nesse caso, pois a garantia existe, o paciente simplesmente não está aqui para exercê-la.

Então, um novo problema na Saúde e no Judiciário: consequências negativas do turismo de saúde.

Existe a má-fé, mas há a obrigação de retornar ao profissional no caso de complicações do caso ou de consultas pós-tratamento obrigatórias. No caso das cirurgias, fica mais difícil e arriscado para profissionais e pacientes: complicações tardias, infecções, dores, necessidade de reavaliações presenciais. A teleconsulta não ajudará na maioria dos casos, em Odontologia, acredito que nenhum momento, pois tudo na profissão requer intervenção e instrumentação. Os improvisos para tratar uma pulpite são inúteis: tentar aplacar uma dor pulsátil com analgésicos, mesmo que morfina não será eficaz. E ainda há dificuldade de se obter medicamentos no exterior.

E houve outro caso: a jovem de vinte anos vivia na Flórida e sofria de uma dor dental que era suportável, mas se agravou em dois meses. Era uma pulpite[2] – a famosa dor de dente – que a população compara como: “pior que dor do parto e pior que dor de pedra nos rins[3]. A jovem comprou medicamentos como paracetamol, ibuprofeno e naproxeno no supermercado americano e os consumiu em grandes quantidades e superdoses de comprimidos. Teve dores gástricas e se automedicou com omeprazol e pastilhas contra acidez. Empurrou a situação até chegar ao fim do ano, quando veio ao Brasil para ver a família e “aproveitar, e passar na dentista”, segundo palavras dela no processo. A dentista diagnosticou e propôs o tratamento endodôntico clássico (tratamento de canal). E foi tratada em consulta única, em duas horas – uma técnica preconizada na literatura[4]. A dentista prescreveu o celecoxibe 200 mg por cinco dias. Tudo correu bem – a dor cessou.

Após a realização do preparo químico-mecânico em dentes com polpas vitais, duas são as opções de tratamento: a obturação do sistema de canais radiculares na mesma sessão operatória; ou a colocação de uma medicação intracanal, postergando a conclusão do tratamento para uma segunda sessão. O tratamento em sessão única em casos de biopulpectomia é um procedimento que apresenta mais vantagens do que desvantagens, tanto para o profissional quanto para o paciente: economia de tempo, economia de material descartável, maior produtividade e início imediato dos procedimentos restauradores. Além disso, tal tratamento vem se tornando um fato rotineiro, principalmente quando os fatores habilidade do profissional, ergonomia na execução e aceitação pelo paciente permitirem a sua realização. O fato de que na biopulpectomia a polpa radicular encontra-se inflamada, mas não infectada, permite a conclusão do tratamento em sessão única, não havendo a necessidade de empregar um medicamento entre as consultas para auxiliar na desinfecção do sistema de canais radiculares.

CASOS PERICIAIS CONCRETOS

Ao voltar à Florida, a jovem supostamente sofreu alguma dor. Procurou três dentistas e um deles acusou o tratamento brasileiro de estar errado e que precisava ser refeito. Propôs US $ 2.400,00. Aproximadamente, seis vezes o valor pago aqui. A jovem não tinha o dinheiro nem tinha cartão de crédito nos EUA. No entanto, resolveu procurar um advogado. Tudo deu errado. Por viver nos EUA e supostamente receber em dólares não teve o benefício da justiça gratuita, pois a juíza brasileira recusou o pedido. Depois o processo entrou em fase pericial e fui escolhido para o caso. A jovem entregou radiografias que foram tomadas lá: nada vi de errado no caso. O canal estava hermeticamente fechado, cônico, sem bolhas de ar. O periápice estava em fase de cicatrização. Um trabalho bem-feito e honesto. Não haveria como condenar a dentista. A história da jovem não podia ser comprovada: “tive um dor, o dentista falou que estava errado, tomei amoxicilina” Aliás, a única prova foi uma foto do frasco de amoxicilina da jovem de uma farmácia do Walgreens. E ela entrou em contato com a dentista no Brasil: “venha até aqui, vou reavaliar”. A dentista nada sabia sobre sua antiga paciente morar na Florida. Novamente, a dentista prescreveu o celecoxibe e foi então que a jovem admitiu que estava nos EUA. A receita brasileira não serviria para comprar o medicamento nos EUA e  então, a dentista conheceu a verdadeira história escondida de sua paciente.

Não houve perícia presencial, fizemos a modalidade perícia indireta: avaliação dos documentos. No caso da Endodontia, o tratamento é visível somente por radiografias. A dentista tinha boas radiografias e as apresentou adequadamente. Já a jovem se atrapalhou, ou foi mal orientada e não conseguiu apresentar as provas. Então, conclui que não havia lógica na demanda e o processo foi encerrado. No entanto, a jovem agora deve pagar a sucumbência (taxas e honorários da dentista brasileira) e o processo encontra-se na fase de execução dessa cobrança, contra uma pessoa que sequer ter residência fixa nos EUA. O processo foi um desastre para ambos os lados.

Atenção aos procedimentos com detalhes, como as lentes de contato. Na literatura[5]:

Indicações e Contraindicações: A indicação da faceta de porcelana deve ser precedida de uma análise do caso e a constatação da real necessidade deste tratamento, pois o bom senso é fundamental, já que a conservação de estruturas dentárias é um dos objetivos:

1.              Mudanças discretas na cor dos dentes,

2.              fechamento de diastemas,

3.              restaurações em dentes com fraturas pequenas,

4.              irregularidades,

5.              mudanças no contorno dentário,

6.              camuflagem de restaurações classes III, IV e V, são alguns exemplos de indicações para lentes de contato.

7.              Dentes pequenos e lingualizados também são ideais para a aplicação sem a necessidade desgaste dental prévio.

Por outro lado, a aplicação de lentes de contato dentais está contraindicada em:

8.              dentes expostos à elevada carga oclusal.

9.              Hábitos para-funcionais como o bruxismo,

10.           grande modificação de posicionamento dentário,

11.           grande destruição coronária,

12.           alterações importantes de cor,

13.           dentes salientes, restaurações extensas e

14.           presença de doença periodontal não favorecem o planejamento com esses laminados.  Quantidade de esmalte insuficiente para a obtenção de uma boa adesão e pacientes com higiene bucal inadequada também são contraindicações.

 

Então, oriento o dentista a recusar tratar seu paciente se entender que o pouco tempo que o paciente ficará no Brasil será insuficiente para todas as etapas do tratamento. E outro problema é a prescrição de medicamentos, pois as receitas brasileiras não servem no exterior.

A GARANTIA DO TRATAMENTO EXISTE...AQUI NO BRASIL

  Um caso forçado foi de um idoso que vivia no Canadá. Veio ao Brasil e tentou uma reabilitação completa em prazo difícil de concluir. Ele exigiu que tudo fosse feito até um dia antes de regressar ao Canadá. Eram dois protocolos de Branemark: superior e inferior. A ideia do paciente era conseguir construir todos os seus dentes em duas semanas no Brasil e voltar. O pós-operatório é complexo. Exige retornos após sete, quatorze e um mês, talvez. Exige radiografias de controle e revisões na oclusão. Por ser complexo, não se pode ter certeza dos retornos do paciente, em especial para ajustar a mordida e a oclusão. As peças podem se soltar. Uma série de complicações. O paciente nunca comunicou a vida no Canadá ao dentista e não pensou em cumprir os retornos, sequer voltou para remover a sutura. Retornou ao Canadá e a prótese começou a incomodar e ele telefonou para o Brasil. O dentista disse para vir na quinta-feira, às 9h. O paciente aceitou, mas desmarcou a consulta por WhatsAPP, pois inventou que viajaria ao Canadá por causa de uma urgência. Na verdade, ele já estava no Canadá. Omitiu tudo do dentista. No fim, achou que tinha muitos direitos, foi orientado por pessoas de má-fé e entrou com um processo indenizatório e perdeu.

Quanto à garantia, ela existe na lei brasileira. O dentista estava disponível, marcou uma consulta, mas o paciente estava a milhares de milhas daqui (Thousand miles away). Não havia o que reclamar porque não exerceu seu direito a usar a garantia do tratamento. Não havia o que reclamar. A questão toda ficou sobre se o dentista sabia que o paciente iria viajar e se morava no exterior. Ir viajar é uma declaração genérica, pode ser uma viagem de uma semana. Mas pessoas que moram em outros países não comunicam que vivem fora. Aí reside tudo – a falta de informações, que o paciente omite, por medo que seja cobrado em dólares. Sugiro que ao ouvir qualquer menção de que o paciente precisa viajar, pergunte sobre essa suposta viagem. A realidade é que você deverá entender essa viagem como um prazo para concluir o tratamento. Muitas vezes o problema também começa com check-up com a frase: “moro nos EUA, estou aqui no Brasil de passagem e quero fazer uma avaliação” deve ser interpretada conforme esses conselhos nossos.

RESUMO

O turismo da saúde é um bom negócio, em razão da moeda forte com a qual os clientes estão abastecidos. No entanto, não é uma modalidade isenta de riscos, pois existe má-fé e possibilidade de um erro se converter uma dívida em dólares ou euros. Siga estes cuidados.

1)      Ao ouvir que o paciente precisará viajar e que o tratamento precisará ser concluído até a data do voo, imagina a risco de o contrato não ser cumprido ou ser feito às pressas, sem o cuidado necessário. As moldagens, lentes de contato e as próteses se encaixam perfeitamente neste risco – usar uma prótese com uma adaptação moderada empurrará o problema para o futuro. Muitos pacientes omitem que moram no exterior por medo de que o preço do tratamento seja inflacionado, por supostamente o paciente ter salário em dólares ou euros. Portanto, questione quando ouvir essa declaração de viagem e pergunte se o paciente mora no exterior. Essa informação deve constar no prontuário.

2)      Considere que poderá haver uma indenização cotada em dólares e que existe muita má-fé movida por parentes ou advogados mal-intencionados. Os dentistas no exterior podem criticar seu procedimento com finalidade de agarrar um novo paciente. O paciente poderá fazer algum tratamento corretivo e apresentar o custo em juízo, em dólares, aqui no Brasil e pretender que o dentista ou a clínica pague.

3)      As receitas de antibióticos e analgésicos não valem no exterior. Medicar à distância será ineficaz. O tratamento da dor à distância no exterior é complicada.

4)      A garantia do produto existe, mas quem não está aqui para exercer o seu direito é o próprio paciente. Por isso, a informação de que o paciente vive no exterior deve sempre ser anotada no prontuário.

 

São Paulo, 3 de março de 2025

(assinatura digital)

 

 

 

 



[1] Perito judicial no TJ-SP com 298 nomeações na área cível (indenizações).

[2] A polpa dentária está singularmente dentro de uma cavidade inelástica (a câmara pulpar do dente). Já outras inflamações em tecidos do corpo (um músculo, uma articulação) conseguem se expandir um pouco com o edema. No caso dos dentes, o edema cria uma pressão insuportável, dentro de uma cavidade que não pode se expandir. Isso causa a dor de dente tão intensa que é popularmente conhecida.

[3] Muitos dentistas negam que exista medicação eficaz para a dor pulpar aguda.

[4] LOPES e SIQUEIRA, Endodontia – Biologia e técnica, 4ª Edição, Editora Elsevier, 2014, p. 467.

 

[5] OKIDA, Ricrdo Coelho, LENTES DE CONTATO: RESTAURAÇÕES MINIMAMENTE INVASIVAS NA SOLUÇÃO DE PROBLEMAS ESTÉTICOS

 

 

Nenhum comentário:

Dor na ATM - Google Groups

Grupos do Google
Participe do grupo Dor na ATM
E-mail:
Visitar este grupo