Os riscos ocultos do turismo médico para o dentista e as
consequências para o profissional. Gestão de risco.
André
Eduardo Amaral Ribeiro[1],
dentista em São Paulo.
Março
de 2025.
Palavras-chave: #quesitos #odontologia #periciajudicial
#odontologialegal
Vejo
fotos de profissionais com pessoas que vieram de países com moeda valorizada,
como os Estados Unidos e Europa, para receberem cirurgias e tratamento
dentários aqui no Brasil. Também conheci uma dentista, poliglota, que criou uma
empresa de turismo de saúde com a qual trabalha para trazer franceses e
italianos para tratamentos em Cirurgia Plástica e Odontologia para o Brasil.
Por
outro lado, conheci um rapaz que foi a Istambul, Turquia, para implantar
cabelos. O preço da cirurgia era um terço do preço aqui no Brasil. O
pós-operatório foi um desastre e não houve socorro, em razão da distância. Vi
também dentistas brasileiros concluírem em um dia reabilitações de todos os
dentes, inferiores e superiores, com protocolos de Branemark e serem
processados por isso. Vi garotas de vinte anos que vieram da Flórida para
tratar um canal aqui no Brasil, pois gastariam U$ 2.300,00 no dentista da
cidade delas lá. Os dentistas não imaginaram as consequências.
Teoricamente,
não existiriam contraindicações para o tratamento, pois seriam pacientes
ideais, com moeda forte no bolso e dispostos a pagar à vista.
Mas
vi casos concretos: quatro processos movidos contra dentistas em 2024. Brasileiros
no exterior exigiram indenizações, mas calculadas em dólares, por
procedimentos refeitos nos EUA. Uma prótese fixa se transformou em um irritante
processo judicial em que um reclamão voltou ao Brasil para participar de uma
única audiência de vinte minutos. O paciente viveu duas semanas no Brasil e procurou
sua dentista para corrigir a ausência de um pré-molar superior, visível no
sorriso. O tratamento correu às pressas, pois a dentista pressionou o protético
para entregar rápido a ponte fixa – que ligaria o canino ao segundo pré-molar superior.
Concluí que a dentista teria que repetir a moldagem e o protético refazer a
parte metálica da prótese fixa com três elementos. No entanto, o paciente tinha
sua passagem aérea marcada e voltou aos EUA. Dez dias depois, lá nos EUA, comeu
um chocolate – segundo o que ele me alegou, pois, tal prova é muito difícil de
se produzir – e o pôntico quebrou. Ele se consultou com um dentista lá, que
criticou o trabalho dental brasileiro, disse que teria de refazer tudo e cobrou
de mais de R$ 2.000,00 dólares. No Brasil, havia custado R$ 1.500,00. Então, o
paciente fez as contas e resolveu culpar sua dentista brasileira.
Por
meio de processo digital, contratou um advogado no Brasil, que agravou com um
pedido indenizatório. A cobrança foi calculada em dólares com câmbio
alavancado, as custas do advogado, o valor foi crescendo com os danos morais e
outras invenções do advogado como dano estético. A juíza determinou a perícia e
fui escolhido como perito.
Minha
apuração pericial concluiu: a dentista nada anotou sobre a pressão do paciente
para concluir o tratamento até a data do seu voo de retorno aos EUA. Ela até foi
informada, pois em outros casos, o paciente não explica onde mora – pois teme
que o valor do tratamento seja inflacionado, pois imagina que o paciente ganha
em dólares, então pode pagar. Já o paciente pensou com má-fé, pois ele apenas
cotou os procedimentos nos EUA, sem pagá-los. Apresentou os valores como se o
tratamento fosse feito. Enfim, ele voltou a viver sem a prótese, com uma falha
na dentição que já carregava há mais de dez anos. A minha perícia foi feita por
videochamada com o paciente e a assistente técnica da clínica dentária
brasileira. O paciente era agressivo e grosso, com tom de deboche ao Brasil. No
fim, apurei que ele apenas conseguiu três orçamentos nos EUA sem iniciar o
retratamento. As notas fiscais americanas são diferentes das nossas brasileiras
e não pude compreendê-las por inteiro. Mas não houve nenhuma prova sólida de
que ele havia substituído a prótese nos EUA. Escrevi tudo isso no laudo, ele se
revoltou e mudou sua estratégia. Pediu uma audiência presencial, veio ao Brasil
para participar e no fim, conseguiu uma pequena indenização de R$ 6.500,00. No
fim, a indenização não custeou a nem mesmo a passagem aérea.
Portanto,
um processo cível de má-fé, um prejuízo razoavelmente pequeno para a clínica
brasileira, um advogado que levou um dinheiro fácil e um homem que vive nos EUA
e que xinga o Brasil o tempo todo, suponho. Tudo deu errado por orientações
equivocadas, talvez um familiar, talvez um familiar, talvez o advogado. Como
perito, já previ tudo isso: a burocracia do processo que traria esse resultado
ínfimo.
Quanto
à dentista brasileira, ela ficou surpresa com a minha conclusão de que deveria
anotar no prontuário que o paciente morava nos EUA, e mais surpresa com minha
sugestão de anotar Turismo de Saúde no prontuário. O entendimento muda nesse
caso, pois a garantia existe, o paciente simplesmente não está aqui para
exercê-la.
Então,
um novo problema na Saúde e no Judiciário: consequências negativas do turismo
de saúde.
Existe
a má-fé, mas há a obrigação de retornar ao profissional no caso de
complicações do caso ou de consultas pós-tratamento obrigatórias. No caso das
cirurgias, fica mais difícil e arriscado para profissionais e pacientes:
complicações tardias, infecções, dores, necessidade de reavaliações
presenciais. A teleconsulta não ajudará na maioria dos casos, em Odontologia,
acredito que nenhum momento, pois tudo na profissão requer intervenção e
instrumentação. Os improvisos para tratar uma pulpite são inúteis: tentar
aplacar uma dor pulsátil com analgésicos, mesmo que morfina não será eficaz. E
ainda há dificuldade de se obter medicamentos no exterior.
E
houve outro caso: a jovem de vinte anos vivia na Flórida e sofria de uma dor
dental que era suportável, mas se agravou em dois meses. Era uma pulpite[2]
– a famosa dor de dente – que a população compara como: “pior que dor do
parto e pior que dor de pedra nos rins[3]”.
A jovem comprou medicamentos como paracetamol, ibuprofeno e naproxeno no
supermercado americano e os consumiu em grandes quantidades e superdoses de
comprimidos. Teve dores gástricas e se automedicou com omeprazol e pastilhas
contra acidez. Empurrou a situação até chegar ao fim do ano, quando veio ao
Brasil para ver a família e “aproveitar, e passar na dentista”, segundo
palavras dela no processo. A dentista diagnosticou e propôs o tratamento
endodôntico clássico (tratamento de canal). E foi tratada em consulta única, em
duas horas – uma técnica preconizada na literatura[4].
A dentista prescreveu o celecoxibe 200 mg por cinco dias. Tudo correu bem – a
dor cessou.
Após a realização do preparo químico-mecânico em
dentes com polpas vitais, duas são as opções de tratamento: a obturação do
sistema de canais radiculares na mesma sessão operatória; ou a colocação de uma
medicação intracanal, postergando a conclusão do tratamento para uma segunda
sessão. O tratamento em sessão única em casos de biopulpectomia é um
procedimento que apresenta mais vantagens do que desvantagens, tanto para o
profissional quanto para o paciente: economia de tempo, economia de material
descartável, maior produtividade e início imediato dos procedimentos
restauradores. Além disso, tal tratamento vem se tornando um fato rotineiro,
principalmente quando os fatores habilidade do profissional, ergonomia na
execução e aceitação pelo paciente permitirem a sua realização. O fato de que
na biopulpectomia a polpa radicular encontra-se inflamada, mas não infectada,
permite a conclusão do tratamento em sessão única, não havendo a necessidade de
empregar um medicamento entre as consultas para auxiliar na desinfecção do
sistema de canais radiculares.
CASOS
PERICIAIS CONCRETOS
Ao
voltar à Florida, a jovem supostamente sofreu alguma dor. Procurou três
dentistas e um deles acusou o tratamento brasileiro de estar errado e que
precisava ser refeito. Propôs US $ 2.400,00. Aproximadamente, seis vezes o
valor pago aqui. A jovem não tinha o dinheiro nem tinha cartão de crédito nos
EUA. No entanto, resolveu procurar um advogado. Tudo deu errado. Por viver nos
EUA e supostamente receber em dólares não teve o benefício da justiça gratuita,
pois a juíza brasileira recusou o pedido. Depois o processo entrou em fase
pericial e fui escolhido para o caso. A jovem entregou radiografias que foram tomadas
lá: nada vi de errado no caso. O canal estava hermeticamente fechado, cônico,
sem bolhas de ar. O periápice estava em fase de cicatrização. Um trabalho
bem-feito e honesto. Não haveria como condenar a dentista. A história da jovem
não podia ser comprovada: “tive um dor, o dentista falou que estava errado,
tomei amoxicilina” Aliás, a única prova foi uma foto do frasco de
amoxicilina da jovem de uma farmácia do Walgreens. E ela entrou em contato com
a dentista no Brasil: “venha até aqui, vou reavaliar”. A dentista nada
sabia sobre sua antiga paciente morar na Florida. Novamente, a dentista
prescreveu o celecoxibe e foi então que a jovem admitiu que estava nos EUA. A
receita brasileira não serviria para comprar o medicamento nos EUA e então, a dentista conheceu a verdadeira
história escondida de sua paciente.
Não
houve perícia presencial, fizemos a modalidade perícia indireta:
avaliação dos documentos. No caso da Endodontia, o tratamento é visível somente
por radiografias. A dentista tinha boas radiografias e as apresentou
adequadamente. Já a jovem se atrapalhou, ou foi mal orientada e não conseguiu
apresentar as provas. Então, conclui que não havia lógica na demanda e o
processo foi encerrado. No entanto, a jovem agora deve pagar a sucumbência (taxas
e honorários da dentista brasileira) e o processo encontra-se na fase de
execução dessa cobrança, contra uma pessoa que sequer ter residência fixa nos
EUA. O processo foi um desastre para ambos os lados.
Atenção
aos procedimentos com detalhes, como as lentes de contato. Na literatura[5]:
Indicações e Contraindicações: A indicação da
faceta de porcelana deve ser precedida de uma análise do caso e a constatação
da real necessidade deste tratamento, pois o bom senso é fundamental, já que a
conservação de estruturas dentárias é um dos objetivos:
1.
Mudanças
discretas na cor dos dentes,
2.
fechamento
de diastemas,
3.
restaurações
em dentes com fraturas pequenas,
4.
irregularidades,
5.
mudanças no
contorno dentário,
6.
camuflagem
de restaurações classes III, IV e V, são alguns exemplos de indicações para
lentes de contato.
7.
Dentes
pequenos e lingualizados também são ideais para a aplicação sem a necessidade
desgaste dental prévio.
Por outro lado, a aplicação de lentes de contato
dentais está contraindicada em:
8.
dentes
expostos à elevada carga oclusal.
9.
Hábitos
para-funcionais como o bruxismo,
10.
grande
modificação de posicionamento dentário,
11.
grande
destruição coronária,
12.
alterações
importantes de cor,
13.
dentes
salientes, restaurações extensas e
14.
presença de
doença periodontal não favorecem o planejamento com esses laminados. Quantidade de esmalte insuficiente para a
obtenção de uma boa adesão e pacientes com higiene bucal inadequada também são
contraindicações.
Então,
oriento o dentista a recusar tratar seu paciente se entender que o pouco tempo
que o paciente ficará no Brasil será insuficiente para todas as etapas do
tratamento. E outro problema é a prescrição de medicamentos, pois as receitas
brasileiras não servem no exterior.
A
GARANTIA DO TRATAMENTO EXISTE...AQUI NO BRASIL
Um caso forçado foi de um idoso que vivia no
Canadá. Veio ao Brasil e tentou uma reabilitação completa em prazo difícil de
concluir. Ele exigiu que tudo fosse feito até um dia antes de regressar ao
Canadá. Eram dois protocolos de Branemark: superior e inferior. A ideia do
paciente era conseguir construir todos os seus dentes em duas semanas no Brasil
e voltar. O pós-operatório é complexo. Exige retornos após sete, quatorze e um
mês, talvez. Exige radiografias de controle e revisões na oclusão. Por ser
complexo, não se pode ter certeza dos retornos do paciente, em especial para
ajustar a mordida e a oclusão. As peças podem se soltar. Uma série de
complicações. O paciente nunca comunicou a vida no Canadá ao dentista e não pensou
em cumprir os retornos, sequer voltou para remover a sutura. Retornou ao Canadá
e a prótese começou a incomodar e ele telefonou para o Brasil. O dentista disse
para vir na quinta-feira, às 9h. O paciente aceitou, mas desmarcou a consulta
por WhatsAPP, pois inventou que viajaria ao Canadá por causa de uma urgência.
Na verdade, ele já estava no Canadá. Omitiu tudo do dentista. No fim, achou que
tinha muitos direitos, foi orientado por pessoas de má-fé e entrou com um
processo indenizatório e perdeu.
Quanto
à garantia, ela existe na lei brasileira. O dentista estava disponível, marcou
uma consulta, mas o paciente estava a milhares de milhas daqui (Thousand miles
away). Não havia o que reclamar porque não exerceu seu direito a usar a
garantia do tratamento. Não havia o que reclamar. A questão toda ficou
sobre se o dentista sabia que o paciente iria viajar e se morava no exterior.
Ir viajar é uma declaração genérica, pode ser uma viagem de uma semana. Mas
pessoas que moram em outros países não comunicam que vivem fora. Aí reside tudo
– a falta de informações, que o paciente omite, por medo que seja cobrado em
dólares. Sugiro que ao ouvir qualquer menção de que o paciente precisa
viajar, pergunte sobre essa suposta viagem. A realidade é que você deverá
entender essa viagem como um prazo para concluir o tratamento. Muitas vezes o
problema também começa com check-up com a frase: “moro nos EUA, estou
aqui no Brasil de passagem e quero fazer uma avaliação” deve ser
interpretada conforme esses conselhos nossos.
RESUMO
O
turismo da saúde é um bom negócio, em razão da moeda forte com a qual os
clientes estão abastecidos. No entanto, não é uma modalidade isenta de riscos,
pois existe má-fé e possibilidade de um erro se converter uma dívida em dólares
ou euros. Siga estes cuidados.
1) Ao ouvir que o paciente
precisará viajar e que o tratamento precisará ser concluído até a data do voo,
imagina a risco de o contrato não ser cumprido ou ser feito às pressas, sem o
cuidado necessário. As moldagens, lentes de contato e as próteses se encaixam
perfeitamente neste risco – usar uma prótese com uma adaptação moderada
empurrará o problema para o futuro. Muitos pacientes omitem que moram no
exterior por medo de que o preço do tratamento seja inflacionado, por
supostamente o paciente ter salário em dólares ou euros. Portanto, questione
quando ouvir essa declaração de viagem e pergunte se o paciente mora no
exterior. Essa informação deve constar no prontuário.
2) Considere que poderá haver uma
indenização cotada em dólares e que existe muita má-fé movida por parentes ou
advogados mal-intencionados. Os dentistas no exterior podem criticar seu
procedimento com finalidade de agarrar um novo paciente. O paciente poderá
fazer algum tratamento corretivo e apresentar o custo em juízo, em dólares,
aqui no Brasil e pretender que o dentista ou a clínica pague.
3) As receitas de antibióticos e analgésicos
não valem no exterior. Medicar à distância será ineficaz. O tratamento da dor à
distância no exterior é complicada.
4) A garantia do produto existe,
mas quem não está aqui para exercer o seu direito é o próprio paciente. Por
isso, a informação de que o paciente vive no exterior deve sempre ser anotada
no prontuário.
São Paulo, 3 de março de 2025
(assinatura
digital)
[1] Perito
judicial no TJ-SP com 298 nomeações na área cível (indenizações).
[2] A polpa
dentária está singularmente dentro de uma cavidade inelástica (a câmara pulpar
do dente). Já outras inflamações em tecidos do corpo (um músculo, uma
articulação) conseguem se expandir um pouco com o edema. No caso dos dentes, o
edema cria uma pressão insuportável, dentro de uma cavidade que não pode se
expandir. Isso causa a dor de dente tão intensa que é popularmente conhecida.
[3] Muitos
dentistas negam que exista medicação eficaz para a dor pulpar aguda.
[4] LOPES e SIQUEIRA, Endodontia – Biologia e
técnica, 4ª Edição, Editora Elsevier, 2014, p. 467.
[5] OKIDA,
Ricrdo Coelho, LENTES DE
CONTATO: RESTAURAÇÕES MINIMAMENTE INVASIVAS NA SOLUÇÃO DE PROBLEMAS ESTÉTICOS
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