quarta-feira, 5 de março de 2025

Ciência da melhoria. Uso de checklists no serviço pericial. Atul Gawande, Como fazer as coisas bem-feitas. Segurança do paciente. Conhecimento acumulado.

 

Ciência da melhoria. Uso de checklists no serviço pericial. Atul Gawande, Como fazer as coisas bem-feitas. Segurança do paciente. Conhecimento acumulado.

 

Por André Eduardo Amaral Ribeiro[1]


Para quem executa o trabalho, porém – para quem cuida dos pacientes acompanha os processos judiciais e, de modo geral, responde quando convocado pelo dever – esses julgamentos parecem ignorar a extrema dificuldade de suas atividades. A cada dia o volume de novos conhecimentos aumenta e novos fatores a considerar, no esforço para fazer o que é certo. Aliás, a falha em condições que envolvem complexidade ocorre, com muito mais frequência, apesar do esforço e não por falta de esforço. É por isso que a maioria das profissões a solução para este problema não tem sido punir, mas incentivar a experiência e o treinamento. Escreveu Atul Gawande[2], um cirurgião e endocrinologista, nascido na Índia, mas que cresceu e estudou nos Estados Unidos.

SOBRE OS CHECKLISTS

E ele continua: Falhas evitáveis são comuns, para não dizer desmoralizantes e frustrantes, em muitas áreas da atividade humana. A razão disso é cada vez mais evidente: o volume e a complexidade de nossos conhecimentos superaram nossa capacidade individual de aplicar seus benefícios de maneira correta, segura. O conhecimento é ao mesmo tempo nossa salvação e nossa perdição. Isso significa que precisamos de um método diferente para evitar falhas, algo que se baseie na experiência e que explore o conhecimento acumulado, mas que também considere e compense nossas inevitáveis deficiências humanas. E já dispomos desse método, embora ela pareça quase ridículo por sua simplicidade e até sem sentido para quem passou anos desenvolvendo meticulosamente qualificações e tecnologias cada vez mais avançadas. Estou falando do checklist. Como escreveu em seu prefácio.

A origem dos checklists se deu na aviação em 1935. Afinal, não se pode errar uma vez num voo comercial ou militar. Usar checklists para decolagens jamais teria ocorrido a um piloto, da mesma maneira que nunca teria passado pela cabeça de um motorista recorrer a checklists para dar a marcha ré ou estacionar em uma vaga (p.43). Depois de terminar o livro, não tive dúvidas que deveria aplicar um checklist ao meu trabalho pericial, tanto no momento da entrevista do autor e do assistente técnico, quanto no momento de redação do laudo. Com a experiência acumulada, fui redigindo e adicionando itens a ele. Atualmente, está nesta forma:

( )           Dever da informação: escrita ou verbal, termos de consentimento, noção de blanket consent, avaliação sobre o entendimento do paciente nas suas expectativas.

( )           Fase inicial: anamnese, o planejamento de tratamento odontológicos, suas classificações em preventivos, restauradores ou estético, diagnóstico por radiografias ou tomografias.

( )           Execução: anotações detalhadas das consultas, avaliação de improvisações ou más-práticas, intervenções de outros dentistas, avaliação do cumprimento do contrato de tratamento.

( )           Paciente/autores: grau de colaboração, relatos incoerentes e exagerados.

( )           Documentação obrigatória: prontuário odontológico, riqueza ou omissão de anotações em cada consulta.

( )           Entendimento: avaliação da expectativa real ou irreal do paciente acerca do tratamento dentário, pois boa parte deles tem a visão distorcida por pesquisas na internet.

( )           Custos: valores irreais.

( )           Distinção entre fatores intrínsecos e extrínsecos relacionados a mão do dentista.

( )           Informações assimétricas: empenho da equipe odontológica em esclarecer o tratamento ao paciente.

( )           Sequelas e prejuízos à saúde do paciente.

( )           Conceitos: éticos e consumeristas se aplicáveis ao exame pericial.

( )           Cirurgia já realizada com intermediação do plano de saúde

( )           O cirurgião era credenciado. Os honorários foram pagos pelo paciente. 

( )           Recusa do material em quantidade ou em qualidade.

( )           Junta médica, avaliação presencial. Exames foram enviados para a junta.

( )           Intervenção na ATM.

( )           Tratamento ortodôntico prévio, escolha do benefício antecipado.

( )           Uso de enxertos autólogos, heterólogos.

( )           Cirurgia na crista ilíaca.

( )           Planilha de materiais presentes.

( )           Uso de formulários pré-formatados pelas equipes de saúde.

 

  Verifico todos estes itens durante a entrevista do paciente na perícia e depois na redação do laudo. Não o considero ainda como definitivo, pois questões novas surgem a cada ano e a lista vai crescendo.

Não se deve confundir um checklist com um trabalho pré-formatado, porque o trabalho pericial deve ser flexível. Textos pré-formatados são inaceitáveis.

As sequelas aos tecidos duros (dentes e ossos) são normalmente avaliadas por radiografias. Já os danos aos tecidos moles são avaliados por exame clínico e fotografias.

Outra vertente de análise pericial é aquela relacionado aos procedimentos hospitalares em Cirurgia Bucomaxilofacial. A pesquisa e contagem dos OPMEs deve ser feita com auxílio de planilhas com os nomes dos materiais e comparações entre pedidos e material efetivamente usado. O uso de formulários pré-formatados ou sem datas sempre foi contraindicado, como nos casos de termos de consentimento genéricos, juridicamente conhecidos como blanket consent[3]. Já abordamos o problema do consentimento genérico no nosso artigo para o Journal of The Brazilian Medical Association, em março de 2022.

Para ser direto nas perguntas, o perito precisa ter conceitos de Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil na Saúde, temas com os quais tenta se manter atualizado.

Sobre a importância do exame físico do paciente na literatura[4] :

 

Entrevista do paciente e História do Problema Dental do Paciente: o diálogo entre o paciente e o profissional deve incluir todos os detalhes pertinentes à queixa principal. A conversa deve ser direcionada pelo clínico no intuito de produzir uma narrativa concisa e clara, que cronologicamente descreva toda a informação necessária sobre os sintomas e o agravo deles.

 

Costumo dizer que existem duas divisões de perícias em Odontologia: a ambulatorial e a hospitalar, sempre relacionada aos OPME (órteses, próteses e materiais especiais.

Para a perícia de tratamento ambulatorial costumamos ver falhas do dentista, que são agravadas pela falta de prontuário, falta de termo de consentimento e falta de exames diagnósticos. A área com maior número de processos indenizatórios é a Implantodontia. Em segundo lugar vem a Ortodontia.

Já em Cirurgia Bucomaxilofacial, a questão sempre gira em torno da negativa de materiais e as acusações de superfaturamento dos OPME.

Vejam uma conclusão pericial minha e recente sobre uma paciente que perdeu seus implantes:

 

Falha na documentação do tratamento: prontuário sem informações obrigatórias fls. 100.

Falha na avaliação pré-operatória: autora tinha doenças sistêmicas que não foram avaliadas ou consideradas (hipertensão arterial sistêmica e diabetes). A tomografia pré-operatória não foi feita como preconizada.

Falha no controle da dor pós-operatória: explicação no quesito 7.

Falha no controle da infecção e perimplantite: explicação no quesito 5.

Má posição dos implantes, sem paralelismo (radiografia do item 4).

A autora contratou dez implantes e não aproveitou nenhum deles. O tratamento da requerida não promoveu a saúde bucal da autora. A autora teve de custear a remoção dos dez implantes com outro profissional, fls. 45. Os implantes foram retirados após onze meses.

O tratamento necessita ser refeito quer com novos implantes, quer com próteses removíveis comuns.

 

Ficou claro que ela não assinou nenhum termo de consentimento, não foi informada dos riscos que correria. Tampouco foi avaliada por meio da anamnese, pois era diabética e hipertensa. Os implantes foram feitos sem qualquer informação sobre essas duas doenças crônicas. Depois, houve falha na geometria dos implantes dentro o osso, um deles vestibularizado, com exposição das espiras, visível com cor escura sob a gengiva da paciente. Este foi o primeiro implante a ser perdido. Ainda não houve prescrição de medicamentos comprovada pelos dentistas. A paciente se queixou da rotatividade dos dentistas, pois foi atendida por um dentista diferente a cada consulta que ia. Isso não foi nenhuma falha ética, mas considerei apenas para entender se cada novo dentista teria informações escritas sobre o que foi feito. E esta é a lógica do prontuário bem redigido. Entenda que seu prontuário deverá conter informações suficientes para que qualquer dentista que pegue o caso, consiga entender o que já foi feito, como foi feito e o que falta ser feito.

 

AVALIAÇÃO DO PRONTUÁRIO AMBULATORIAL

 

O pior problema dos prontuários são as descrições em uma só linha, por exemplo: exodontia do 26, implante do 11, endo do 24. Não escreva dessa forma.

 Escreva por extenso e se livrará de problemas futuros: cárie no dente 24, necrose pulpar, sem resposta a nenhum teste térmico, radiografia periapical, indicação de tratamento endodôntico, anestesia (1 x prilocaína), cirurgia de acesso, NaClO[5], lima 25 para pulpectomia, dois canais V e P, Ca(OH)2[6], IRM. Cetoprofeno 100 mg , VO, a cada 12 horas, por cinco dias. Retornar em sete dias. CID 10: K.02. e K.04.1

Veja que conteve o nome da patologia que deu origem (cárie e necrose pulpar), métodos para o diagnóstico (radiografia periapical e testes térmicos), depois o tratamento proposto (tratamento endodôntico por pulpectomia), sal e quantidade anestésica usada (um tubete de prilocaína), procedimentos naquela consulta (cirurgia de acesso, lavagem com hipoclorito de sódio, instrumentação com lima 25, localização de dois canais, uso de medicação intracanal com hidróxido de cálcio). Selamento com IRM. Depois a medicação prescrita (cetoprofeno 100 mg por via oral). Usamos abreviaturas e foi claro para qualquer dentista que venha atender o paciente na próxima consulta, que não seja você.

Acho excelente usar o CID sempre. Memorize para usar como abreviatura dos diagnósticos: K. 02 para cáries, K.04 para doenças pulpares e K.05 para doenças periodontais, isso garantirá segurança do seu prontuário, sem gerar dúvidas sobre as patologias em tratamento. É uma ótima prática.

Mas a maioria dos prontuários que vêm para uma perícia judicial escrevem Endo do 24. Isso lhe trará problemas, tenha certeza disso. Escreva direito e seja claro, portanto. A avaliação do prontuário é a questão mais importante nos casos ambulatoriais, veja o item do checklist: Documentação obrigatória: prontuário odontológico, riqueza ou omissão de anotações em cada consulta, lá em cima.

Penso em escrever uma explicação sobre cada item do checklist aqui no Linkedin. Na medida do meu tempo.

 

 

São Paulo, 25 de novembro de 2024



[1] Perito judicial em Odontologia, nomeado 281 vezes no TJ-SP, TJ-AL, TRT-15, TJ-PR e TJ-MG

[2] GAWANDE, Atul, Checklist – Como fazer as coisas bem-feitas, Editora Sextante, 2023.

[3] Cabar, RIBEIRO, Gorga; Civil sentencing in health care and their relation with blanket consent in rulings from the Court of Appeals of the State of São Paulo. Journal of The Brazilian Medical Association; Volume 68, Number 3, March, 2022.

[4] COHEN, Caminhos da Polpa, 5ª edição, Editora Elsevier, Rio de Janeiro, 2010, p. 9.

[5] Hipoclorito de sódio, em sua fórmula química.

[6] Hidróxido de cálcio, em sua fórmula química.

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