domingo, 27 de março de 2022

Nosso trabalho científico publicado na Revista da Associação Médica Brasileira, março de 2022 - original em inglês, versão em português.

 

Condenações cíveis na área de saúde e sua relação com o  blanket consent em julgados de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

RESUMO: Estudo de cinco acórdãos julgados em 2020 e 2021. Todos eles versavam sobre tratamentos de saúde (estéticos, preventivos ou curativos), nos quais observamos que: (i) em todos eles houve a determinação de produção de prova pericial; (ii) em todos eles, a prova pericial nada apontou no sentido de más práticas profissionais; (iii) em todos os casos houve condenação dos profissionais de saúde, embora a prova pericial tenha apontado a correição dos procedimentos; (iv) o fundamento para a condenação foi a falta de informação clara, prévia e completa ao paciente; (v) todos os casos indicaram expressamente o acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018); (vi) o termo pesquisado é um estrangeirismo: blanket consent, não foi visto na parte decisória dos cinco julgados da corte paulista; (vii) poderíamos traduzir o termo por consentimento genérico, (viii) o termo ainda não se tornou comum na redação estrita de acódãos no TJ-SP, embora todos os julgados tenham seguido os julgados do STJ: REsp 1540580/DF -- 5. Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado.

Unitermos: termo de consentimento, informação genérica, blanket consent.

 

Introdução:

As decisões por câmaras de segundo grau no Tribunal de Justiça vêm se balizando por um recurso especial julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, RECURSO ESPECIAL Nº 1.540.580 – DF.

Isso parece introduzir mais uma preocupação para os profissionais de saúde que se preocupam com o consentimento detalhado ao paciente. Uma vez que embora existente alguma forma de consentimento, os Magistrados podem considerá-lo nulo, por meio do decreto de ser um consentimento genérico, chamado também de blanket consent.

 

Objetivo: estudar processos nos quais se viu a decisão condenatória e verificar o que houve em comum entre os processos estudados. Em todos eles houve menção ao julgado do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

 

Método: a pesquisa foi feita no item Jurisprudência, no site www.tjsp.jus.br , usado unicamente o termos blanket consent. Então, a ferramenta de pesquisa do Tribunal trouxe 17 processos julgados e transitados em julgado. A pesquisa foi realizada na segunda semana de novembro de 2021 pelos próprios autores. Os julgados deveriam ter  diretamente a indicação expressa do acórdão do STJ - REsp 1.540.580-DF. Essa indicação expressa foi requisito para o processo ser considerado e avaliado pelos autores.

 

Casos escolhidos em razão de quatro requisitos presentes:

 

Caso 1: autora fez exame de holter por 24 horas. No momento da retirada do aparelho, notou manchas na pele, que lhe causaram deboche de seus alunos porque é professora da rede pública. A perícia afastou imperícia no exame de holter. Indicação expressa do acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

Decisão dos desembargadores se deu pela falha de informação no momento do pré-atendimento porque a clínica requerida entregou apenas um folheto informativo sobre o uso do aparelho. Tal folheto foi julgado inválido porque não demonstrou a aceitação da autora, por falta de assinatura.

Condenação em segundo grau: R$ 5.000,00 por danos morais.

Transcrição de trecho da decisão:

No caso concreto a requerida sequer refuta que não apresentou nos autos documento assinado que comprove o dever de informação, não houve prova de qualquer informação que deveria ser prestada à autora, seja sobre a possibilidade de formação de cicatrizes evidentes, surgimento de manchas na pele, descoloração ou pigmentação cutânea na área de fixação dos eletrodos, entre outras, ou seja, inequívoco o descumprimento do dever de informação. Apelação Cível nº 1014524-26.2019.8.26.0161 -Voto nº 12939.

 

Caso 2:  autora submetida à cirurgia para a exérese de uma tuba uterina. No entanto, durante a cirurgia, ambas as trompas uterinas foram removidas. No entanto, a segunda trompa era sã. Autora não consentiu previamente nenhuma intervenção na segunda trompa. O médico tem o dever inarredável de informar.

Testemunhas foram convergentes sobre a correição do procedimento cirúrgico. Indicação expressa do acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

 

Condenação em segundo grau: R$ 10.000,00 por danos morais.

Transcrição de trecho da decisão:

 

O que se conclui, de todos os elementos coligidos, é que, apesar de correto, o procedimento de retirada da trompa saudável foi efetivado sem o prévio e imprescindível consentimento da demandante. No caso, a autora tinha pleno conhecimento de que seria retirada uma de suas trompas, em razão de gravidez ectópica previamente diagnosticada, porém, não sabia que também seria removida a outra, saudável, o que configura violação do dever de informação, um dos mais relevantes na relação médico-paciente. Apelação nº 1017092-69.2017.8.26.0004 -Voto nº 40041

 

Caso 3: Autora submetida a cirurgias plásticas nas pálpebras e nas mamas. Cicatrizes hipertróficas, assimetria das mamas. Embora o laudo pericial tenha apontado correição no procedimento cirúrgico, os julgadores entenderam que a autora não estava esclarecida dos riscos, perigos e desvantagens que os procedimentos poderiam causar. Duas cirurgias com tentativa de correção da estética das mamas, mas a autora faleceu por outras causas não relacionadas às consequências da cirurgia.

Indicação expressa do acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

Condenação em segundo grau: R$ 25.000,00 por danos morais.

Transcrição de trecho da decisão:

 

Conforme se observa dos documentos médicos juntados aos autos, e conforme laudo de perícia médica, a autora, em 16.12.2013, visando à correção de sinais de expressão ao redor da boca e à correção em pálpebras inferiores e superiores, realizou o procedimento cirúrgico denominado “retidectomia” (fls. 43 e 221 registro de entrada; fls. 223/224 prontuário médico), além de ser submetida também à troca de próteses mamárias em 11.02.2014 (fls. 43). Incontroverso, portanto, que as intervenções a que fora submetida a autora tiveram única e exclusiva finalidade plástica visando à legítima expectativa de obter resultado embelezador e melhora da sua aparência, de modo que a obrigação assumida pelo cirurgião plástico réu se caracterizou como obrigação de resultado. Com efeito, de acordo com o laudo pericial produzido, a cirurgia facial de retidectomia a que fora submetida a autora não é isenta de riscos, assim como as complicações alegadas pela autora na cirurgia mamária são passíveis de ocorrência.

Logo, a falta de informação pelo médico ao paciente é considerada ilícito contratual, configurando culpa do profissional na modalidade de negligência (omissão no dever de informar), a ensejar de reparar os danos morais. Apelação Cível nº 0002255-87.2015.8.26.0653 -Voto nº 6955

 

 

Caso 4: Autor se submeteu a artroplastia para colocação de prótese total em joelho. Infecção pós-operatória que levou ao óbito do autor. A prova pericial concluiu que o diabetes e a idade avançada do autor foram fatores complicadores para a recuperação após a cirurgia, e em razão das patologias, motivaram a infecção grave. O autor faleceu. Embora com laudo pericial favorável aos médicos, os julgadores entenderam que houve falha no dever de prestar informações prévias. Tratamento da infecção inclusive com amputação parcial de membro.

Indicação expressa do acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

 

 

Condenação em segundo grau: R$ 40.000,00 por danos morais.

Transcrição de trecho da decisão:

 

Em sequência, firmou “Termo de Consentimento Esclarecido para Procedimento Cirúrgico” (fls. 2417), redigido nos seguintes termos:

“(...) 2) Recebi todas as informações necessárias quanto aos riscos, benefícios, alternativas de tratamento, bem como fui informado sobre os riscos e benefícios de não ser tomada nenhuma atitude terapêutica diante da natureza da(s) enfermidade(s) diagnosticada(s).

3) Compreendo que durante os exames e/ou procedimentos: ____________________, para tentar curar, ou melhorar as supracitada(s) condição(ões), poderá(ão) ocorrer situação(ões) imprevisível(eis) ou fortuitas.

4) Estou ciente de que em procedimentos médicos invasivos, como o citado, podem ocorrer complicações gerais, como sangramento, infecção, problemas cardiovasculares e respiratórios e outros (...)”.

 

Entretanto, apesar das inúmeras terapias e tratamentos dispensados ao Sr. Alexandre, tais como desbridamento cirúrgico da infecção, retirada de prótese, curativo a vácuo, e “conduta extrema de amputação ao nível da coxa” no dia 22.02.2016 (fls. 1587/2199), permaneceu sob os cuidados da equipe da UTI, evoluiu com várias complicações, vindo aóbito no dia 13.03.2016, com “insuficiência de múltiplos órgãos, choque séptico, infecção de partes moles e insuficiência renal” (fls. 13).

Nota-se, portanto, pelos esclarecimentos prestados pelo perito e pelas respostas dadas aos quesitos, que a presença de comorbidades como a diabetes e debilidade imunológica, associada à idade avançada do paciente (83 anos) foram fatores que teriam prejudicado a evolução cirúrgica e motivaram o quadro infeccioso que acometeu o Sr. Alexandre.

Ora, se o nosocômio já tinha pleno conhecimento do histórico médico do paciente, inclusive tendo submetido à avaliação clínica pré-operatória (fls. 2454), tendo constatado na ocasião os mencionados riscos aqui citados pela AACD que aumentam a probabilidade de complicações, surge a dúvida se a cirurgia deveria ter sido realizada, conforme bem salientaram os autores.

Ademais, é obrigação de o médico esclarecer ao seu paciente tudo o que está relacionado à enfermidade e as chances de causar algum efeito não esperado. O diagnóstico, prognóstico, procedimentos, benefícios, reações adversas, entre outras informações pertinentes ao tratamento devem ser muito bem esclarecidas.

No caso, os esclarecimentos contidos no “Termo de Consentimento Esclarecido para Procedimento Cirúrgico” (fls. 2417) foram insuficientes, pois descreve complicações semelhantes às que ocorrem em outros procedimentos cirúrgicos como sangramento, infecção, problemas cardiovasculares e respiratórios, mas o paciente não foi informado da possibilidade de complicações mais graves, no caso específico do Sr. Alexandre, por ser ele portador de comorbidades, associada à idade avançada, do risco aumentado para infecção pós-operatória.

Para essa indenização, o valor equivalente a R$ 40.000,00 para cada um dos autores é bastante razoável para recompor os prejuízos sofridos pelos autores e a reprimir o ato, sem implicar enriquecimento a quem recebe. Apelação Cível nº 1045020-32.2016.8.26.0100 -Voto nº 7251

 

Caso 5: autora se submeteu a cirurgia no aparelho reprodutor feminino. Diagnóstico de adenomiose e colecistopatia calculosa, após as quais se indicou a cirurgia de histerectomia total abdominal. O laudo pericial concluiu que não houve falha na técnica cirúrgica.

Com isso, de fato a hipótese era de improcedência dos pedidos de indenização por dano material e moral baseados em suposta falha na realização do procedimento cirúrgico em si.

Indicação expressa do acórdão do STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018)

Condenação em segundo grau: R$ 15.000,00 por danos (material e moral).

 

Transcrição de trecho da decisão:

 

No entanto, a causa de pedir da ação não se limitou ao alegado defeito da técnica cirúrgica utilizada para tratamento da autora, mas também compreendeu suposta falha nas informações prestadas pela médica ré àquela. De fato, tratando-se de relação de consumo, o profissional prestador de serviço tem o dever de informar com exatidão o diagnóstico do paciente, bem como o procedimento realizado para o tratamento e riscos a ele relacionados (art. 6º, inciso III, CDC).

Assim, considerando-se a gravidade da conduta da médica ré e a extensão do dano experimentado pela demandante, tem-se como adequado o quantum indenizatório fixado em R$ 15.000,00 pelo magistrado de origem, valor que observa os princípios da proporcionalidade e razoabilidade na hipótese, não se justificando a majoração pretendida pela autora. Apelação Cível nº 1002545-82.2017.8.26.0405 -Voto nº 24402

 

Discussão:

Por experiência dos autores em encargos periciais, o consentimento informado prévio dado ao paciente muitas vezes não existe. Este seria o aspecto quantitativo: dois valores lógicos – ausentes ou presentes.

Já no aspecto qualitativo, o termo existe concretamente em forma escrita. No entanto, durante o julgamento, o termo de consentimento passa pela avaliação dos desembargadores para outros valores lógicos: genérico ou completo.

Nos cinco casos avaliados pelos autores, houve a produção de prova pericial favorável aos profissionais de saúde. Na maioria dos casos na área da saúde, a prova pericial é usada como única e suficiente para o julgamento do feito. Muito embora, a conclusão favorável da prova pericial, não houve absolvição das equipes de saúde. Isso chamou a atenção dos autores, que resolveram pesquisar essa suposta segurança. Ou seja, por consequência lógica: se a prova pericial fosse favorável, haveria a absolvição.

Houve a condenação cível nos cinco casos estudados. Em comum, distintas câmaras de julgamento citaram diretamente o REsp 1540580-DF julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Como condições para a inclusão do julgado na pesquisa: (a) o termo de consentimento deveria estar presente e deveria ser escrito – então, descartados casos em que houve explicação vocal por parte dos profissionais de saúde; (b) a prova pericial deveria ser favorável às equipes de saúde; (c) deveria haver condenação cível das equipes de saúde; (d) o dispositivo REsp 1540580 deveria ser obrigatoriamente transcrito no acórdão.

Com os quatro requisitos cumpridos, o feito foi avaliado.

 

 

 

 

Conclusão.

Embora a prova pericial não tenha apontado falhas nos procedimentos cirúrgicos, houve condenação cível das equipes de saúde. A análise do dever da informação coube aos magistrados de 2ª Grau no TJ-SP, que aplicaram suas interpretações sobre o valor do conteúdo daquele que supostamente seria o termo de livre consentimento. Dessa interpretação, condenaram os profissionais de saúde, independentemente das conclusões do laudo pericial. Ou seja, a prova pericial não foi absoluta/única na decisão das câmaras de segundo grau, uma vez que nos cinco casos, as provas periciais apontaram correição dos procedimentos, o que não foi automático para a absolvição dos profissionais de saúde.

Os magistrados das câmaras cíveis do TJSP pautuaram pelo julgado do STJ, no qual se emprega o termo estrangeiro blanket consent. No entanto, o termo não é estritamente usado em língua inglesa no Tribunal Paulista.

 

 

Referências:

Bioética clínica: reflexões e discussões sobre casos selecionados. / Coordenação de Gabriel Oselka. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Centro de Bioética, 2008.

 

Inadequate record keeping by dental practitioners, LF Brown, School of Dentistry, The University of Queensland, Brisbane. Australian Dental Journal, 2015.

 

Recent research into healthcare professions regulation: a rapid evidence assessment; Julie Browne; Cardiff University, Cardiff Unit for Research and Evaluation in Medical andDental Education (CUREMeDE), Cardiff, Wales, 2021.

 

WhatsApp in Clinical Practice: A Literature Review; Maurice MARS and Richard E SCOTT

 Dept of TeleHealth, University of KwaZulu-Natal, South Africa, NT Consulting - Global e-Health Inc., Calgary, AB, Canada

 

Superior Tribunal de Justiça, <www.stj.jus.br>

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, <www.tjsp.jus.br>

 

 

 

 

 

 

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