quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Utilização de lidocaína endovenosa como método analgésico

Selma Westphal Rodrigues Oléa Corrêa *

A utilização clínica da lidocaína endovenosa como método analgésico foi introduzida em 1961 por dois anestesiologistas que demonstraram sua eficácia no controle da dor pós-operatória (Bartlett and Hutaserani, 1961). Além de sua eficácia em diminuir a intensidade da dor aguda no pós-operatório, essa droga também pode ser empregada para controlar algias neuropáticas crônicas. Boas et al. (1982) relataram redução da dor por desaferentação e dor de origem central após infusão de lidocaína endovenosa e, a partir desse relato, surgiram diversos novos estudos comprovando sua eficácia analgésica. Portanto, existem dados consistentes na literatura que sustentam o emprego desse fármaco por via endovenosa como mais uma ferramenta para controlar dores crônicas e agudas, de origem somática ou neural.

A lidocaína é um anestésico local do grupo amida e seu mecanismo de ação consiste em bloquear canais de Na+ específicos, conhecidos como resistentes à tetrodotoxina. O bloqueio do canal iônico leva à interrupção da passagem de sódio através da membrana para o interior neuronal (Butterwoeth and Strichartz, 1990). Como consequência da perda do influxo desse eletrólito pela membrana, teremos elevação do potencial de ação e, portanto, bloqueio da condução do estímulo nervoso.




A lidocaína não possui apenas propriedade em bloquear a condução nervosa de estímulos dolorosos. A lidocaína apresenta ação antiarrítmica ao impedir batimentos prematuros através da ligação a canais de sódio abertos, durante a fase 0 do potencial de ação cardíaco, sendo classificada como droga antidisrítimica Ib por Vaughan Williams, por esse efeito. A sua utilização como analgésico foi evitada por muito tempo devido à gravidade de seus efeitos adversos, que geralmente estão associados com a administração de doses acima do que é preconizado pela literatura (5mcg/mL-1). Dentre esses efeitos deletérios encontram-se lesão neural irreversível por ruptura de membrana celular; vasodilatação e consequente hipotensão; estimulação paradoxal do sistema nervoso central, com agitação, tremor, confusão mental e em último estágio convulsões de difícil controle e morte. Atualmente já se sabe que dose considerada pequena como 1 a 2 mg/kg administrada em bolus, seguida por infusão contínua de 1,5 mg/kg/h, provém analgesia considerável e essa posologia é correspondente à concentração plasmática de 2 mcg/mL-1. Sendo assim, a dose analgésica preconizada pode ser considerada como segura.

Como já citado anteriormente, o alvo de ação mais conhecido da lidocaína são os canais de sódio dependentes de voltagem, que são divididos em subtipos conhecidos com a sigla NaV e apresentam distribuição no sistema nervoso de maneira diversa. Sendo assim, temos NaV 1.8 e Nav 1.9 em neurônios periféricos sensitivos e NaV 1.7 no sistema nervoso simpático. Além desses canais citados há também uma variável “patológica”, que é o subtipo embrionário NaV 1.3 que se prolifera em nervos periféricos lesados, provocando hiperexcitabilidade no local traumatizado. O bloqueio deste subtipo embrionário de canal de Na+ explica a propriedade que esse anestésico local apresenta em reduzir descargas ectópicas oriundas de nervos periféricos lesados. Devido às diferenças entre os subtipos de canais de sódio, a injeção endovenosa de lidocaína interrompe as descargas ectópicas provenientes dos nervos em condições patológicas, sem levar a um bloqueio de condução dos impulsos. Portanto, como já demonstrado em diversos trabalhos, este fármaco controla fenômenos como a alodinia e a hiperalgesia em diversas neuropatias dolorosas de maneira sistêmica (Chaplan et al., 1995; Abdi et al., 1998; Jasmin et al1998; Sinnott et al., 1999).

A existência de outras vias responsáveis pelo efeito analgésico da lidocaína ainda é pesquisada. Além da já citada ação sobre os canais de sódio, a administração desse anestésico local por via endovenosa provoca aumento na concentração de acetilcolina no líquor, levando à exacerbação das vias descendentes inibitórias da dor, através da atuação deste neurotransmissor em receptores muscarínicos M3 (Abelson KS, 2002). Esse mecanismo ocorre por meio da inibição de receptores para glicina (Biella G, 1993), associado à liberação de opioides endógenos (Cohen SP 2003), potencializando a analgesia. Outro fator que pode contribuir para alívio da dor é a propriedade que esta droga possui em diminuir a resposta inflamatória à isquemia e à lesão tecidual induzida por citocinas. A ocorrência de redução da despolarização pós-sináptica mediada por receptores N-metil-D-aspartato e neurocinina quando a lidocaína atinge a medula espihal também foi descrita (Nagy I, 1996) apenas em modelos animais.

Nos últimos anos, o uso de lidocaína endovenosa como técnica analgésica ganhou maior visibilidade. Estudos recentes comprovam a eficácia da sua utilização no pós-operatório, diminuindo o consumo de opioides, acelerando a alta hospitalar. Além de sua eficácia em aliviar a dor de origem aguda, essa droga também propicia controle de disparos ectópicos nas algias neurais de origem crônica. Sua ação provavelmente se dá por mecanismos multimodais, o que pode explicar a redução na hiperalgesia periférica e hiperexcitabilidade central, após injeção endovenosa. A lidocaína endovenosa deve ser vista como mais uma ferramenta disponível no arsenal antálgico, podendo ser utilizada como prova terapêutica e opção analgésica nos casos refratários às drogas convencionais, diminuindo inclusive o consumo de opioides. A administração de lidocaína apresenta custo baixo em comparação com outros fármacos, fácil disponibilidade e segurança dentro de limites posológicos já estabelecidos.

Bibliografia
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Groudine SB, Fisher HA, Kaufman RP Jr, Patel MK, Wilkins LJ, Mehta SA, Lumb PD. Intravenous lidocaine speeds the return of bowel function, decreases postoperative pain, and shortens hospital stay in patients undergoing radical retropubic prostatectomy. Anesth Analg. 1998, 86(2), 235-9.
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Sörensen J, Bengtsson A, Bäckman E, Henriksson KG, Bengtsson. Pain analysis in patients with fibromyalgia. Effects of intravenous morphine,lidocaine, and ketamine. Scand J Rheumatol. 1995, 24(6), 360-5.
* Médica especialista em anestesiologia com certificado de atuação em dor crônica pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Atua no serviço de anestesia e clínica para tratamento de dor do HC-FMRP. Aluna de pós-graduação do Departamento de Biomecânica, Medicina e Reabilitação do Aparelho Locomotor

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