quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Dentista viaja pelos EUA e denuncia crise dentária



Nos 18 anos em que ele vem trabalhando em seu consultório privado, casas de repouso e, mais recentemente, em uma clínica odontológica móvel que percorre os rincões mais isolados dos montes Apalaches, Edwin Smith pôde contemplar extremos de negligência.



Viu a vergonha de uma menina de 14 anos que mantinha a cabeça baixa por ter perdido a maioria de seus dentes em função da subnutrição, e o orgulho de um montanhês idoso que, sem dinheiro para o dentista, arrancou sozinho dois de seus dentes infeccionados, com a ajuda de um alicate e um gole de água oxigenada.
Ele viu os resultados brutais das agressões de maridos irados que espancam suas mulheres e o resultado final dos truques dos viciados em medicamentos que racham os dentes um a um para conseguir receitas de remédios contra a dor. Mas o que ele mais vê são pessoas comuns que enfrentam tanta dificuldade para manter comida na mesa que negligenciam a higiene bucal. Muitas delas comem doces, usam água de poço sem flúor, e começaram a arruinar seus dentes há muito tempo, porque fumam e mascam tabaco.
Smith tem oportunidades raras de observar a situação do Kentucky, o Estado americano que tem a maior proporção de adultos de menos de 65 anos desdentados, e no qual metade dos residentes não dispõem de planos odontológicos. Ele se esforça por combater os efeitos da escassez crônica de dentistas nas áreas rurais, e a lentidão no avanço quanto aos hábitos de higiene bucal.
"O nível de necessidade é difícil de avaliar sem que você o veja de perto", disse Smith, que opera uma clínica odontológica gratuita em um dos condados mais pobres do Estado. Ele também fornece tratamentos gratuitos a cerca de metade dos pacientes que utilizam seu consultório pessoal em Barbourville.
O Kentucky está entre os piores Estados americanos no que tange à proporção de cidadãos de baixa renda atendidos por clínicas odontológicas gratuitas ou subsidiadas, e menos de um quarto dos dentistas do Estado aceita pagamentos via sistema Medicaid, um seguro federal de saúde, de acordo com dados federais de 2005.
Até agosto de 2006, quando o sistema foi reformado, o índice de reembolso do Estado para pacientes atendidos sob o Medicaid era um dos mais baixos do país. Os especialistas dizem que isso contribui para a escassez de dentistas em áreas mais pobres e rurais. A diretora de odontologia do Estado, Julie Watts McKee, afirmou que, no ano passado, o reembolso via Medicaid para serviços odontológicos prestados a crianças do Kentucky foi aumentado em 30%.
Mas mesmo com o aumento, coberto pela redução em benefícios ortodônticos, o pagamento do Medicaid aos dentistas é ainda 50% inferior ao valor de mercado, disse Ken Rich, diretor de odontologia do Medicaid estadual. E no caso dos adultos, ele afirma, o valor é 65% inferior ao de mercado.
"Não muita coisa mudou, por aqui, ao longo dos anos", disse Glen Anderson, que faz dentaduras em Corbin, Kentucky, há duas décadas. Ele vende por US$ 400 um par de dentaduras que muitos dentistas fornecem por US$ 1,2 mil ou mais. Como seu pai, avô e irmão, ele as faz sem licença. "Os trabalhadores irregulares existem por um motivo, aqui", afirma Anderson. "As pessoas precisam de dentes, mas não têm dinheiro para pagar um dentista".
Embora o Estado esteja entre os piores do país em termos de saúde bucal, não é nem de longe o único. Os moradores de Estados vizinhos sofrem de problemas odontológicos semelhantes, e por motivos também parecidos ¿acesso inadequado a tratamentos odontológicos, incapacidade de pagar o dentista, uso generalizado de tabaco de mascar e uma pressuposição generalizada de que perder dentes é inevitável quando a pessoa envelhece. A Virgínia Ocidental, por exemplo, que têm a maior população de desdentados com idade superior a 65 anos, também tem uma das menores proporções de adultos que consultam um dentista ao menos uma vez por ano.
Smith está tentando detectar e resolver problemas antes que avancem demais. A cada semana, ele percorre as tortuosas estradas dos Apalaches com sua clínica móvel, a Kids First Dental Care, e visita escolas para oferecer consultas grátis a crianças dos condados mais pobres do Kentucky. Smith investiu US$ 150 mil em dinheiro pessoal na montagem da clínica, que ocupa a carreta de um caminhão de 18 rodas. A clínica tem sete funcionários, e seus custos são bancados com doações privadas e verbas do Medicaid.
A dor causada por problemas odontológicos é uma das causas dominantes de dias de aula perdidos por estudantes do Kentucky, de acordo com funcionários do serviço estadual de saúde, e quase metade das crianças do Estado tem entre duas e quatro cáries não tratadas. Cerca de 10% dos moradores do Estado são completamente desdentados, de acordo com dados federais de 2004.
Smith diz que, em seu consultório privado, pelo menos uma vez por mês atende a um paciente que colou um dente quebrado à raiz ou a um dente adjacente. Ele também encontra pacientes que tentam evitar os custos de um tratamento odontológico fazendo gargarejos com álcool, a fim de reduzir as infecções dentárias, ou usando comprimidos de aspirina pulverizados como solução para reduzir a dor nas gengivas. Ambas as táticas agravam os problemas, porque queimam as gengivas e causam úlceras, ele afirma.
"Sob o Medicaid", diz Smith, "a única escolha disponível para uma pessoa com severa infecção dentária é uma extração, mesmo que ela tenha 25 anos de idade e se trate de um dente da frente". Ele acrescenta que o programa não cobre tratamentos de canal ou dentaduras, ainda que ajude a pagar por uma dieta de líquidos para pessoas em dentes.
O Medicare, o programa federal de saúde para idosos, não paga serviços odontológicos. Smith disse que algumas pessoas presumem que, porque seus pais e avós perderam os dentes antes dos 40, o mesmo se aplique a elas. Elas consideram que, sem dentes, não sofrerão dores de dente, e assim os arrancam preventivamente.
"Tente encontrar emprego, se você tem 30 ou 40 anos e não tem os dentes da frente", disse Jane Stephenson, fundadora de uma escola que oferece treinamento profissional a mulheres de baixa renda dos Apalaches. Ela conta que seu programa começou a ajudar mulheres a comprar dentaduras 10 anos atrás, e que cerca de metade delas, a maioria das quais na casa dos 40 anos, perderam dentes ou têm focos de infecção.
Já Justin Baker ostenta dentes escuros e tortos e serve como exemplo de outro dos problemas de higiene bucal do Kentucky: o uso de anfetaminas. "Eles apodreceram", diz Baker, 16 anos, sobre os danos causados por menos de um ano de uso de drogas.
O Estado também tem o maior número de fumantes do país, e uma das maiores proporções de uso de tabaco para mascar. Enquanto Baker se sentava para lavar a boca, na clínica odontológica gratuita de sua escola, a Knox Central High School, em Barbourville, Smith lamentava.
"Mesmo que ele consiga dar uma virada em sua vida, o estrago está feito", comentou o odontologista, sobre a alta probabilidade de que Baker logo perca todos os dentes.
Tradução: Paulo Migliacci ME

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